A VERDADE DO EVANGELHO
TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Charles Finney

 

AULA 1 

VÁRIAS CLASSES DE VERDADES

(Da edição de 1847)

 

Antes de prosseguir nessas investigações, devo chamar sua atenção para um assunto que precisa estar exatamente no início deste curso de estudos e que aí deve ser encontrado, caso essas aulas sejam publicadas na devida ordem: refiro-me às várias classes de verdades consideradas neste curso de instrução, com a maneira pela qual chegamos a conhecê-las ou a crer nelas. Todas as investigações humanas avançam sobre o pressupos to da existência e validade de nossas faculdades e da credibilidade do testemunho inequívoco delas. Negar isso é cancelar de uma vez a possibilidade do conhecimento ou de uma crença ra cional e entregar a mente ao ceticismo universal.

As classes de verdades a que seremos chamados a estar atentos em nossas investigações podem ser divididas, com exatidão suficiente para nos so propósito, em verdades que não precisam ser provadas e verdades que precisam ser provadas. A mente humana é constituída de tal forma que, por meio de leis próprias, percebe, reconhece ou co nhece algumas verdades sem testemunho externo. Ela toma conhecimento direto dessas verdades, e só pode ser assim.

A primeira classe, ou seja, verdades que não precisam ser provadas, pode ser subdividida em verdades da razão pura e verdades da sensação. Essas duas classes são em certo sentido evidentes por si, mas não no mesmo sentido. Verdades da razão pura são intuições dessa faculdade, e verdades da sensação são intuições dos sentidos. Falarei, portanto, de verda des manifestas da razão e de verdades manifestas da sensação. Devo pressu por que vocês possuem algum conhecimento de psicologia e dar por certo que compreendem a diferença entre as intuições da razão e as intuições dos sentidos.

Por verdades manifestas da razão, portanto, quero dizer aquela classe de verdades intuídas e confirmadas diretamente por essa faculdade, de acordo com suas evidências e em virtude de suas leis, sempre que forem declaradas de tal forma que os termos da proposição pelos quais são expressas são en tendidos. Não se chega a elas por argumentações ou por nenhum tipo de evidência, exceto o que está contido nelas mesmas. Assim que se compreen dem os termos da proposição em que são expressas, a razão confirma sua veracidade de maneira instantânea e segura. É desnecessário e absurdo pro curar qualquer outra prova dessa classe de verdades, exceto elaborar uma declaração compreensível delas. Também é completamente prejudicial, tal vez absurdo, tentar provar -- na acepção normal do termo provar -- uma verdade manifesta da razão. Todas as tentativas de provar tais verdades por argumentação implicam um absurdo, sendo mais uma obra de supererrogação, como seria tentar provar que vocês vêem um objeto com os olhos bem abertos e fixados nele.

Os axiomas matemáticos pertencem a essa classe.

As verdades manifestas da razão são verdades de conhecimento certo. Uma vez declaradas dessa forma ou apresentadas de algum modo à mente para que sejam compreendidas, a mente não só crê nelas, como sabe que são abso lutamente verdadeiras. Ou seja, ela percebe que são verdades absolutas e sabe que é impossível não serem verdadeiras. Embora não se chegue a essa classe de verdades por argumentação, faz-se muito uso delas na argumentação, já que a principal premissa de um silogismo é com freqüência uma verdade manifesta da razão.

Essa classe de verdades é afirmada por uma faculdade de todo distinta do entendimento ou daquele poder que adquire por intermédio dos sentidos todo o seu conhecimento. Ela toma consciência de uma classe de verdades que, pela própria natureza dela, permanece eternamente à parte dos sentidos e, por conseguinte, do entendimento. Os sentidos jamais nos podem dar as ver dades abstratas da matemática. Jamais nos podem dar o absoluto ou o infini to. Não nos podem dar uma lei moral ou alguma lei. Os sentidos podem dar fatos, mas não leis e princípios.

Que Deus e o espaço e o tempo são infinitos, que todos os atributos de Deus devem ser infinitos, são verdades manifestas da razão; ou seja, são verdades de uma afirmação e pressuposição a priori. Jamais se chega a elas pela argumentação ou por indução, e não se pode chegar. A mente só as conhece em virtude de leis próprias, pressupondo-as e intuindo-as diretamente, sem pre que apresentadas. Os olhos da razão vêem-nas de maneira distinta, assim como os olhos da mente vêem objetos de visão apresentados ao órgão físico da visão. A mente é construída de tal maneira que vê algumas coisas com os olhos naturais da carne e algumas verdades diretamente com olhos próprios, sem o uso de algum olho físico. Todas as verdades manifestas da razão per tencem a essa classe; ou seja, são verdades que a mente vê e conhece, e não simplesmente crê. Na argumentação, a declaração crua de uma verdade ma nifesta é suficiente, desde que, conforme se disse, seja expressa com tal clare za que os termos da proposição sejam compreendidos. Deve-se ter em mente, na argumentação, que todos os homens possuem mente e que as leis do conhe cimento são físicas e, claro, estabelecidas e comuns a todos eles. As condições do conhecimento são iguais em todos os homens. Devemos, portanto, sempre pressupor que não se pode deixar de compreender as verdades manifestas assim que sejam expostas com tal clareza que os termos em que são expressas sejam compreendidos. Nossas pesquisas futuras apresentarão muitas ilustra ções da verdade desse tipo.

Deve-se também notar que a universalidade é um atributo das verdades manifestas da razão. Ou seja, são universais nos seguintes sentidos:

1. Todos os homens afirmam serem verdades quando as compreendem.

2. Todos afirmam serem verdades do mesmo modo; ou seja, por intuição direta. Ou as percebem por luz própria e não por meio de argumentação, demonstração ou sentidos.

3. As verdades manifestas da razão são verdadeiras sem exceção e, nesse sentido, também universais.

4. A necessidade também é um atributo das verdades manifestas. Ou seja, são necessariamente verdadeiras e não é possível considerá-las de outra ma neira. E quando são cumpridas as condições alistadas, só podem ser conheci das dessa maneira por todos os agentes morais.

As verdades manifestas da razão podem, de novo, ser divididas em ver dades meramente manifestas e verdades primeiras da razão. Essa classe de ver dades possui todas as características das verdades manifestas, ou seja: são verdades universais; são verdades necessárias; são verdades de intuição dire ta; são verdades de conhecimento certo.

Nisto está sua peculiaridade: são verdades necessária e universalmente conhecidas pelos agentes morais. Ou seja, não se distinguem das meras ver dades manifestas da razão, exceto pelo fato de serem universalmente conhecidas a partir da lei da agência moral; assim todos os agentes morais possuem e devem possuir conhecimento certo delas.

São verdades de pressuposição necessária e universal. Estejam ou não no pensamento direto em algum tempo ou a todo tempo, sejam ou não objeto de atenção específica da mente, de qualquer forma são pressupostas por uma lei da necessidade universal. Suponham, por exemplo, que a lei da causa e efeito não estivesse o tempo todo ou em algum tempo sujeita a uma ponderação ou atenção distinta. Suponham que a proposição em palavras jamais viesse à mente: "todo efeito deve ter uma causa". Ainda assim, a verdade está ali em forma de um conhecimento absoluto, uma pressuposição necessária, uma afir mação a priori, e a mente defende isso com tamanha força, que é totalmente incapaz de dispensar, esquecer ou negá-la na prática. Toda mente a tem por conhecimento certo muito antes de conseguir compreender a linguagem em que é expressa, e nenhuma declaração ou evidência pode dar à mente alguma convicção mais firme de sua veracidade do que a dada primeiro pela necessi dade. Isso é verdade em relação a todas as verdades dessa classe. Elas são sempre e necessariamente aceitas por todos os agentes morais, quer haja um pensamento distinto, quer não. E a maior parte dessa classe de verdades é aceita sem ser objeto freqüente ou, pelo menos, objeto geral de ponderação ou atenção direta. A mente as pressupõe, sem que haja consciência direta da pres suposição.

Por exemplo, agimos a cada momento, julgamos, raciocinamos e cremos na pressuposição de que cada efeito precisa ter uma causa mesmo assim não temos consciência de pensar nessa verdade nem de pressupô-la, até que algo nos chame atenção para ela. As verdades primeiras da razão, portanto, que sejam lembradas com nitidez, são sempre e necessariamente pressupostas, embora possam receber pouca atenção. Elas são conhecidas universalmente, antes que se compreendam as palavras pelas quais possam ser expressas e, ainda que possam ser jamais expressas numa proposição formal, a mente tem por certo um conhecimento delas assim como tem por certa a existência de si mesma.

Mas cabe indagar se existem algumas condições para que sejam pressu postas e, caso existam, quais são. A inteligência faz essas pressuposições sob certas condições ou independentemente de todas ou de algumas condições? A verdadeira resposta a essa indagação é que a mente só aceita essa pressupo sição após o cumprimento de certas condições. Cumpridas essas condições, a inteligência faz essa pressuposição de maneira instantânea e necessária em virtude de uma lei da própria natureza dela e a faz, quer a pressuposição seja um objeto distinto da consciência, quer não.

A única condição dessa pressuposição que precisa ser mencionada é a per cepção mental daquilo com que a verdade primeira mantém a relação de um antecedente lógico ou uma condição lógica. Por exemplo, para desenvolver a pressuposição de que cada efeito deve ter uma causa e para necessitar dessa pressuposição, a mente só precisa perceber ou possuir a concepção de um efeito, à qual a pressuposição em questão segue-se de imediato por uma lei da inteligência. Essa pressuposição não é uma dedução lógica a partir de alguma premissa; mas a partir da percepção de um efeito ou a partir do fato de a mente possuir a idéia ou noção de um efeito, a inteligência irresistivelmente, em virtude de leis próprias, pressupõe a verdade primeira da causalidade como condição lógica e necessária do efeito; ou seja, pressupõe que um even to e todos os eventos precisam ter uma causa.

A condição pela qual as verdades primeiras da razão são pressupostas ou desenvolvidas é chamada a condição cronológica de seu desenvolvimen to, por ser anterior em tempo e na ordem da natureza para seu desenvolvi mento. A mente percebe um efeito. Com isso, pressupõe a verdade primei ra da causalidade. Ela percebe o corpo e, com isso, pressupõe a verdade primeira: o espaço existe e deve existir. Essas verdades primeiras, vamos repetir, não são pressupostas na forma de uma proposição, ponderada ou expressa em palavras, e nem sempre, ou talvez nunca de início, a mente está consciente da pressuposição, ainda que desse momento em diante a verdade coloque-se entre as posses inalienáveis da mente e para sempre; a partir de então, seja necessariamente reconhecida em todos os julgamen tos práticos da mente.

Assim, deve-se dizer de modo específico, as verdades primeiras da razão postam-se tão profundas na mente, que talvez seja raro aparecerem direta mente no campo do pensamento consciente; ainda assim, a mente as conhece de maneira tão absoluta, que já não as pode esquecer, desprezar ou negar na prática, assim como não pode esquecer, desprezar ou negar na prática a exis tência dela mesma.

Afirmei que todas as argumentações procedem da pressuposição dessas verdades. Preciso fazê-lo necessariamente. E absurdo tentar provar verdades primeiras para um agente moral: pois caso seja um agente moral, já as conhece absolutamente e, se não conhecer, não há meio possível de colocá-lo em posse delas, a não ser apresentar à sua percepção a condição cronológica do desen volvimento delas, e em circunstância alguma seria necessário mais que isso, pois ocorrendo essa percepção, segue-se a pressuposição ou desenvolvimen to, por uma lei de necessidade absoluta e universal. E até que essas verdades sejam desenvolvidas de fato, nenhum ente pode ser um agente moral.

Não há argumentação com alguém que questione as verdades primeiras da razão e exija prova delas. Toda argumentação deve, pela natureza da men te e pelas leis do raciocínio, ter as verdades primeiras da razão por certas e notórias e como condição a priori de todas as deduções e demonstrações lógi cas. Algumas deles devem ser pressupostas verdadeiras, direta ou indireta mente, em todos os silogismos e em todas as demonstrações.

Em todas as nossas investigações futuras na linha da verdade que realiza remos, teremos ocasiões abundantes para aplicar e ilustrar o que se disse ago ra acerca das verdades primeiras da razão. Se, em algum estágio de nosso progresso, iluminarmos uma verdade dessa classe, que se tenha em mente que a natureza da verdade é a preclusão, ou, como diriam os advogados, a interdição de toda controvérsia.

Negar a realidade dessa classe de verdades é negar a validade de nosso conhecimento mais perfeito e, é claro, negar a validade de nossas faculdades. A única pergunta a se levantar a respeito dessa classe de verdades é: a verda de em questão pertence a essa classe? Há muitas verdades dessa classe que não obtiveram reconhecimento geral de que pertencem a ela. Disso teremos exemplos abundantes que ocorrerão em nosso caminho quando prosseguir mos em nossa investigação. Há muitas verdades que os homens, todos os homens sadios, com certeza conhecem, sobre as quais raramente pensam, mas que, em teoria, negam com persistência.

Antes de dispensar essa parte de nosso assunto, mencionarei algumas das muitas verdades que pertencem inegavelmente a essa classe, deixando outras para serem mencionadas conforme prosseguirmos, encontrando-as em inves tigações futuras.

Já observei três tipos dessa classe, ou seja: a verdade da causalidade -- a existência do espaço e do tempo. Que o todo de qualquer coisa é igual a todas às suas partes é também uma verdade dessa classe, conhecida universal e necessariamente e pressuposta por todos os agentes morais. Também, que algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo.

Uma terceira classe de verdades manifestas são verdades particulares da razão. A razão as intui e afirma diretamente. São verdades de conhecimento certo, mas não possuem os atributos de universalidade ou infinitude. A essa classe pertencem as verdades de nossa existência, de identidade pessoal e individualidade. Não são verdades dos sentidos nem são verdades primei ras ou manifestas, de acordo com o uso comum desses termos. Mas são ver dades de intuição racional e são consideradas verdadeiras à luz da própria evidência delas e, como tais, nos são dadas como verdades indubitáveis pela consciência.

Todas as verdades que ficam no âmbito de nossa experiência, ou seja, to dos os nossos exercícios e estados mentais são verdades manifestas para nós. Não precisamos prová-las. Quer sejam fenômenos, quer sejam estados do In telecto, da Vontade ou da Sensibilidade. Quando se fala delas no coletivo, não podem ser chamadas verdades manifestas, exceto no sentido de que para nós manifestam-se no campo da consciência, como fatos ou realidades, e que as conhecemos ou as afirmamos com certeza indubitável.

As verdades dos sentidos, como dissemos, são em certo sentido verdades manifestas. Ou seja, são fatos dos quais a mente possui conhecimento direto por intermédio dos sentidos. Ao falar que as verdades dos sentidos são de certa forma manifestas, falo, é claro, de verdades ou fatos de nossos sentidos ou da queles revelados a nós diretamente pelos nossos sentidos. Sei que não é comum falar dessa classe de verdades como manifesta; e não o são no sentido que são as intuições racionais simples. Ainda assim, são fatos ou verdades que não pre cisam de provas para nos serem estabelecidas. O fato de que seguro esta caneta na mão é uma realidade manifesta para mim, tanto quanto três e dois são cinco. Percebo uma e outra com a mesma realidade e nenhuma delas precisa de prova alguma. Não é meu intuito exaurir este assunto, nem entrar em distinções sutis e altamente metafísicas, mas só dar indicações e deixar sugestões que o façam estar atento ao assunto, e suprir nossas necessidades durante nosso curso de estudos, deixando a seu critério entrar numa análise mais crítica do assunto.

Das verdades que exigem prova, a primeira classe para a qual devo cha mar atenção é a das verdades de demonstração. Essa classe de verdades admite grau tão elevado de prova que, completada a demonstração, a inteligência confirma que é impossível não serem verdades. Essa classe, quando demons trada com eficiência, são consideradas verdadeiras com não menos certeza que as verdades manifestas: mas a mente não chega à percepção delas por algum caminho. Chega-se àquela classe de maneira universal e direta, a priori, pela intuição direta, sem argumentação. Chega-se a esta classe universalmente pela argumentação. Aquelas são obtidas sem nenhum processo lógico, enquanto esta última classe é sempre e necessariamente obtida por conseqüência de um processo lógico. Muitas vezes obtemos essas verdades por um processo estri tamente lógico, sem consciência alguma da maneira pela qual as obtivemos. Essas classes, portanto, diferentes das outras, não devem ser comunicadas e estabelecidas sem argumentação, mas pela argumentação. Nessas classes de verdades, a mente, por leis próprias, não descansará a menos que sejam de monstradas. Elas admitem demonstração e, pela natureza delas e pela natu reza da inteligência, precisam ser demonstradas antes que possam ser consi deradas e aceitas como conhecimento certo. Muitas delas podem ser aceitas, no sentido de receber crédito, sem uma demonstração absoluta. Mas não se pode dizer de maneira exata que a mente as conhece antes que tenha percor rido a demonstração, e depois disso ela não pode deixar de conhecê-las.

Para colocar a mente em posse de uma verdade primeira da razão, vocês só precisam apresentar a condição cronológica de seu desenvolvimento. Para revelar uma verdade manifesta da razão, vocês só precisam defini-la com ter mos suficientemente claros. Mas para provar uma verdade pertencente à classe ora em consideração, vocês precisam cumprir as condições lógicas do intelec to para afirmá-las. Ou seja, precisam demonstrá-las.

A próxima classe a considerar são as verdades da revelação. Quero dizer as verdades reveladas por inspiração divina. Todas as verdades são de algum modo reveladas à mente, mas nem todas, pela inspiração do Espírito Santo. A mente conhece algumas das verdades dessa classe; em outras, ela só crê. Ou seja, algu mas dessas verdades são objetos ou verdades do conhecimento ou da intuição quando levadas pelo Espírito Santo ao campo da visão ou intuição. Outras são só verdades de fé ou verdades em que se deve acreditar. A divindade do Senhor Jesus Cristo é uma verdade da revelação da primeira classe, ou seja, uma ver dade da intuição ou de conhecimento certo quando revelada para a mente pelo Espírito Santo. Essa verdade, quando assim revelada, é intuída diretamente pela razão pura. Ela sabe que Jesus é verdadeiro Deus e vida eterna pela mesma lei pela qual conhece as verdades primeiras da razão. O único motivo que a alma pode dar para crer ser ela verdade é saber que é verdade. Ela vê ou perce be que é verdadeira. Mas essa percepção ou intuição é condicionada pela reve lação do Espírito Santo. Ele "há de receber do que é meu e vo-lo há de anunci ar", disse Jesus. Mais acerca desse tópico será acrescentado no seu devido lu gar. Os fatos e verdades ligados com a humanidade do Senhor Jesus são da segunda classe de verdades da revelação, ou seja, são só verdades de crença ou de fé, em contraste com verdades da razão pura ou da intuição.

Essa classe de verdades, pela própria natureza, não são suscetíveis de in tuição. Podem ser reveladas de tal maneira que a mente não tenha dúvidas acerca delas, sendo-lhe difícil distingui-las das verdades de conhecimento certo; entretanto, só se crê nelas e não são conhecidas com a mesma certeza que as verdades da intuição.

Por si, a Bíblia não é estrita e propriamente uma revelação para o homem. É, mais propriamente, uma história de revelações antes feitas a certos homens. A fim de ser uma revelação para nós, suas verdades devem ser levadas pelo Espírito Santo para o campo da visão espiritual. Essa é a condição para co nhecermos as verdades da revelação ou crer nelas da maneira apropriada. "Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, o não trouxer". "O homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe pare cem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritual mente". "Mas o que é espiritual [possui o Espírito] discerne bem tudo".

Mas não devo me prolongar aqui neste assunto. Só acrescentaria agora que os que questionam a divindade de Cristo manifestam evidência conclusi va de que Cristo jamais lhes foi revelado pelo Espírito Santo. Os que defen dem sua divindade como uma teoria ou opinião não são de algum modo be neficiados por ela, pois Cristo não é conhecido por alguém de maneira salvadora, exceto pela revelação do Espírito Santo.

Às classes de verdades já consideradas podem-se acrescentar algumas outras, tais como Verdades Prováveis, Verdades Possíveis, etc. Mas levei longe demais esta discussão para atender aos propósitos deste curso de instrução e, creio, o sufici ente para impressionar a mente de vocês com uma noção da importância de aten tar para a classificação das verdades e verificar a classe específica a que certa verdade pertence como a condição para obtê-la com sucesso para si mesmo ou dar posse dela a outras mentes. Como mestres de religião, nunca lhes será de mais ter incutida a importância de atentar para essa classificação. Estou plena mente convencido de que boa parte da ineficácia dos mestres de religião deve-se ao fato de não estudarem as leis do conhecimento e da crença e não obedecerem a elas para levar convicção à mente de seus ouvintes. Eles não parecem ter consi derado as diferentes classes de verdades e como a mente passa a conhecê-las ou acreditar nelas. Por conseguinte, ou gastam o tempo em esforços menos que inú teis para provar verdades primeiras ou manifestas, ou esperam que verdades suscetíveis de demonstração sejam recebidas e aceitas sem tal demonstração. Com freqüência fazem pouca ou nenhuma distinção entre as diferentes classes de ver dades e raramente ou nunca chamam a atenção de seus ouvintes a essa distinção. Conseqüentemente, desconcertam e muitas vezes confundem seus ouvintes com violações flagrantes de todas as leis da lógica, conhecimento e crença. Com fre qüência tenho sido afligido e até angustiado com a deficiência de mestres de religião nesse aspecto. Estudem para se apresentarem aprovados, como obreiros que não têm de que se envergonhar e estarem aptos para se recomendar à consci ência de todo homem, na presença de Deus.

 

COMO CHEGAMOS AO CONHECIMENTO DE CERTAS VERDADES

(Da edição de 1851)

 

Todos os ensinos e argumentações pressupõem certas verdades. E preciso pressupor e aceitar que as afirmações inequívocas e a priori da razão são váli das para todas as verdades e princípios afirmados dessa forma; ou cada tentativa de construir uma ciência de qualquer tipo ou de obter certo conheci mento sobre algum assunto seria vão e até absurdo. Devo começar minhas aulas sobre governo moral estabelecendo certos postulados ou axiomas mo rais que são, a priori, afirmados pela razão e, portanto, manifestos a todos os homens quando expressos de tal forma que sejam compreendidos; passarei alguns instantes estabelecendo alguns fatos que pertencem mais propriamente ao departamento da Psicologia. A Teologia está tão ligada à Psicologia que é impossível ser bem-sucedido no estudo daquela, sem um conhecimento des ta. Todo sistema teológico e toda opinião teológica pressupõem alguma ver dade na Psicologia. A Teologia é, em grande parte, a ciência da mente e suas relações com a lei moral. Deus é uma mente ou Espírito: todos os agentes morais são a sua imagem. A Teologia é a doutrina de Deus, compreendendo sua existência, atributos, relações, caráter, obras, palavra, governo (providen cial e moral) e, é claro, deve abranger os fatos da natureza humana e a ciência da agência moral. Todos os teólogos supõem e precisam supor a verdade de algum sistema de psicologia e filosofia mental, e os que clamam com mais vigor contra a metafísica não o fazem menos que os outros.

Há uma distinção entre a mente ter conhecimento de uma verdade e ter conhecimento de que a conhece. Assim, começo definindo a autoconsciência.

Autoconsciência é o reconhecimento que a mente faz de si mesma. E o ato de perceber ou conhecer a si próprio: sua existência, atributos e estados, com os atributos de liberdade ou necessidade que caracterizam tais atos e estados. Disso falarei com freqüência daqui em diante.

 

As revelações da autoconsciência

A autoconsciência nos revela três faculdades primárias da mente a que chamamos intelecto, sensibilidade e vontade. O intelecto é a faculdade de conhe cimento; a sensibilidade é a faculdade ou susceptibilidade de sentir; a vonta de é a faculdade executiva ou a faculdade de fazer ou agir. Todo pensamento, percepção, intuição, raciocínio, opinião, formação de noções ou idéias perten cem ao intelecto.

A consciência revela as várias funções do intelecto e também da sensibili dade e da vontade. Aqui, só vamos atentar para as funções do intelecto, uma vez que nosso interesse presente é verificar os métodos pelos quais o intelecto chega a seus conhecimentos, os quais nos são dados na autoconsciência.

A autoconsciência é, em si, obviamente, uma das funções do intelecto; e cabe aqui dizer que uma revelação na consciência é ciência e conhecimento. O que a consciência nos dá, sabemos. Seu testemunho é infalível e conclusivo em todos os assuntos sobre os quais testifica.

Entre outras funções do intelecto, que não preciso mencionar, a autoconsciência revela a tríplice distinção fundamental dos sentidos, da razão e do entendimento.

 

Dos sentidos

O sentido é a capacidade que percebe sensações e as leva ao campo da consciência. A sensação é uma impressão deixada na sensibilidade por algum objeto externo ou por algum pensamento na mente. O sentido assume ou per cebe a sensação e essa sensação percebida é revelada na consciência. Se a sen sação vem de algum objeto fora da mente, como um som ou uma cor, sua percepção pertence ao sentido externo. Se vem de algum pensamento ou exer cício mental, a percepção é do sentido interno. Eu disse que o testemunho da consciência é conclusivo para todos os fatos dados por seu testemunho ine quívoco. Não precisamos nem podemos ter qualquer evidência mais contun dente da existência de uma sensação que aquela dada pela consciência.

Nossas primeiras impressões, pensamentos e conhecimento são deriva dos dos sentidos. Mas o conhecimento derivado puramente dessa fonte seria necessariamente muito limitado.

 

 

Da razão

A autoconsciência também nos revela a razão ou a função a priori do inte lecto. A razão é aquela função do intelecto que defende ou intui de imediato uma classe de verdades que, pela natureza delas, não podem ser conhecidas nem pelo entendimento nem pelos sentidos. Tais, por exemplo, são os axiomas e postulados da matemática, filosofia e moral. A razão fornece leis e prin cípios primeiros. Ela fornece o abstrato, o necessário, o absoluto, o infinito. Ela fornece todas as suas afirmações pela contemplação ou intuição direta, não por indução ou raciocínio. As classes de verdades dadas por essa função do intelecto são manifestas. Ou seja, a razão intui ou as contempla de maneira direta, assim como a faculdade dos sentidos intui ou contempla de maneira direta uma sensação. Os sentidos fornecem à consciência a visão direta de uma sensação e, assim, a existência da sensação é conhecida de maneira ine gável por nós. A razão fornece à consciência a visão direta da classe de verda des das quais toma conhecimento; e da existência e validade dessas verdades já não podemos duvidar, assim como não podemos duvidar da existência de nossas sensações.

Há uma diferença entre o conhecimento derivado dos sentidos e o deri vado da razão: no primeiro caso, a consciência nos dá a sensação: pode-se questionar se as percepções dos sentidos são uma contemplação direta do objeto da sensação e, por conseguinte, se o objeto realmente existe e é o real arquétipo da sensação. De que a sensação existe estamos certos, mas se exis te o que supomos ser o objeto e causa da sensação, admite dúvida. A ques tão é: será que os sentidos intuem ou contemplam de maneira imediata o objeto da sensação? O fato de nem sempre ser possível confiar no relato dos sentidos parece mostrar que a percepção dos sentidos não é uma contem plação imediata do objeto da sensação; a sensação existe, isso sabemos; que possui uma causa, sabemos; mas talvez não saibamos se conhecemos corre tamente a causa ou o objeto da sensação.

Mas a respeito das intuições da razão, essa faculdade contempla direta mente as verdades que afirma. Essas verdades são os objetos de suas intui ções. Não são recebidas em segunda mão. Não são inferências ou induções, não são opiniões, nem conjecturas ou crenças; são conhecimentos diretos. As verdades fornecidas por essa faculdade são vistas e conhecidas de maneira tão direta que é impossível duvidar delas. A razão, em virtude de leis própri as, contempla-as face a face à luz das evidências delas próprias.

 

Do entendimento

O entendimento é aquela função do intelecto que toma, classifica e arranja os objetos e verdades da sensação sob uma lei de classificação e arranjo dada pela razão, e assim forma noções e opiniões e teorias. As noções, opiniões e teorias do entendimento podem ser errôneos, mas não é possível haver erros nas intuições a priori da razão. O conhecimento do entendimento é com tama nha freqüência o resultado de indução ou raciocínio, ficando com isso total mente distante de uma percepção direta, que muitas vezes só são conheci mento num sentido modificado e restrito.

Da imaginação, da memória, etc, não há necessidade que eu fale aqui.

O que se disse, creio, preparou o caminho para dizer que as verdades da teologia agrupam-se sob duas categorias: Verdades que exigem prova e ver dades que não exigem prova.

 

Verdades que exigem prova.

Primeiro. Dessa classe deve-se dizer, em geral, que a ela pertencem todas as verdades não intuídas diretamente por alguma função do intelecto à luz de evidências próprias.

Toda verdade a que se deva chegar por raciocínio ou indução, toda verda de que se alcança por outro testemunho, que não o de observação, percepção, intuição ou reconhecimento direto é uma verdade que pertence à classe que necessita de prova.

Segundo. As verdades de demonstração pertencem à classe que necessita de prova. Quando verdades de demonstração são de fato demonstradas por alguma mente, ela com certeza sabe que são verdades e sabe não ser possível que afirmações contrárias sejam verdadeiras. Para incutir outras mentes com essas verdades, precisamos conduzi-las pelo processo de demonstração. Fa zendo isso, não podem deixar de ver a verdade demonstrada. A mente huma na em geral não recebe uma verdade de demonstração nem descansa nela, a menos que seja demonstrada. Ela o faz com freqüência sem reconhecer o pro cesso de demonstração. As leis do conhecimento são físicas. As leis da lógica são inerentes a todas as mentes; mas em vários estados de desenvolvimento em diferentes mentes. Se uma verdade que exige demonstração e pode ser demonstrada é simplesmente anunciada e não demonstrada, a mente sente-se insatisfeita e não descansa sem a demonstração que considera necessária. Pouco adianta, portanto, dogmatizar, quando se deve argumentar, demons trar e explicar. Em todos os casos de verdades não manifestas ou de verdades que exigem prova, os mestres religiosos devem entender e as condições lógi cas do conhecimento e da crença racional e adaptar-se a elas; eles atentam contra Deus quando só dogmatizam quando devem argumentar, explicar e provar, lançando sobre a soberania de Deus a responsabilidade de produzir convicção e fé. Deus convence e produz fé, não pela deposição das leis men tais estabelecidas, mas de acordo com elas. E, portanto, absurdo e ridículo dogmatizar e asseverar, quando explicações, ilustrações e provas são possí veis e exigidas pelas leis do intelecto. Fazer isso e depois deixar a cargo de Deus fazer as pessoas compreender e crer pode-nos ser conveniente no mo mento, mas se não significar morte para nossos auditores, não se nos devem agradecer. Somos intimados a inquirir que classe pertence certa verdade, se é uma verdade que, pela natureza e pelas leis da mente, precisa ser ilustrada ou provada. Caso sim, não temos o direito de meramente asseverá-la, se não ti ver sido provada. Vamos cumprir as condições necessárias de uma convicção racional e depois deixar o resultado com Deus.

A classe de verdades que não exigem prova pertencem as da revelação divina.

Todas as verdades conhecidas do homem são divinamente reveladas a ele em algum sentido, mas falo aqui de verdades reveladas ao homem pela inspiração do Espírito Santo. A Bíblia anuncia muitas verdades manifestas e muitas verda des de demonstração. Elas podem ou poderiam ser conhecidas, pelo menos mui tas delas, independentemente da inspiração do Espírito Santo. Mas a classe de verdades de que falo aqui baseia-se inteiramente no testemunho de Deus, sendo verdades de inspiração pura. Algumas dessas verdades estão acima da razão, no sentido de que a razão não pode, a priori, nem afirmar nem negá-las.

Quando se afirma que Deus as afirmou, a mente não precisa de outra evi dência de sua veracidade, pois por uma lei necessária do intelecto, todos os homens afirmam a veracidade de Deus. Mas apesar dessa lei necessária da mente, os homens não conseguem apoiar-se no simples testemunho de Deus, solicitando evidências de que se deve crer em Deus. Mas tal é a natureza da mente, conforme constituída pelo Criador, que nenhum agente moral neces sita provar que o testemunho de Deus deve ser recebido. Uma vez estabeleci do que Deus declarou um fato ou verdade, essa é, para todos os agentes mo rais, toda a evidência necessária. A razão, por leis próprias, afirma a perfeita veracidade de Deus, e embora a verdade anunciada possa ser tal, que a razão, a priori, não consiga nem afirmar nem negá-la; ainda assim, quando afirmada por Deus, a razão confirma irresistivelmente que o testemunho de Deus deve ser recebido.

Essas verdades exigem prova no sentido de determinar que se demonstre que foram dadas por inspiração divina. Demonstrado esse fato, as próprias verdades só precisam ser compreendidas, e a mente necessariamente afirma sua obrigação de crer nelas.

Meu presente objetivo mais particular é observar:

 

Verdades que não exigem prova.

Essas são verdades a priori da razão e verdades dos sentidos; ou seja, são verdades que não exigem prova porque são intuídas ou observadas direta mente por uma dessas faculdades.

As verdades a priori possuem os seguintes atributos.

(1) São verdades absolutas ou necessárias no sentido de que a razão afirme que é preciso que sejam verdadeiras. Cada efeito tem uma causa adequada. O espaço deve existir. E impossível que não exista, mesmo que qualquer outra coisa exista ou não. O tempo deve existir, haja ou não eventos que se sucedam no tempo. Assim, a necessidade é um atributo dessa classe.

(2) A universalidade é um atributo de uma verdade primeira. Ou seja, as verdades dessa classe não comportam exceção. Todo efeito deve ter uma cau sa; não pode haver efeito sem uma causa.

(3) As verdades primeiras são verdades de conhecimento necessário e universal. Ou seja, não são meramente cognoscíveis, mas conhecidas de todos os agen tes morais por uma lei necessária de seu intelecto.

O espaço e o tempo existem e devem existir; que cada efeito possui e deve possuir uma causa, e verdades desse tipo são conhecidas universalmente e pressupostas por todos os agentes morais, quer os termos em que são decla radas tenham sido ouvidas por eles, quer não. Esta é a característica que dis tingue as verdades primeiras das outras, meramente manifestas, das quais logo falaremos.

(4) As verdades primeiras são, é claro, manifestas. Ou seja, são percebidas de maneira universal e direta à luz de evidências próprias.

(5) As verdades primeiras são de razão pura e, é claro, verdades de conhe cimento certo. São conhecidas universalmente com tal certeza que é impos sível algum agente moral negar, esquecer ou desconsiderá-las na prática. Ainda que possam ser negadas em teoria, são sempre e necessariamente reconhecidas na prática. Nenhum agente moral pode, por exemplo, em hi pótese alguma, negar ou esquecer ou desconsiderar na prática as verdades primeiras de que o tempo e o espaço existem e devem existir; que cada efei to deve ter uma causa.

Deve-se, portanto, lembrar sempre que as verdades primeiras são pressu postas e conhecidas universalmente, e em todos os nossos ensinos e em todas as nossas indagações devemos tomar por certas as verdades primeiras. E ab surdo tentar prová-las, em razão de necessariamente pressupô-las como base e condição de todo raciocínio.

A mente chega a um conhecimento dessas verdades pela observação dire ta e necessária delas, preenchida a condição de primeiro perceber a condição lógica delas. A mente percebe ou atinge a concepção de um efeito. Com essa concepção conclui instantaneamente, quer pense quer não na conclusão, que esse efeito teve, e que cada efeito deve ter, uma causa.

A mente percebe o corpo ou tem noção dele. Essa concepção desenvolve necessariamente a verdade primeira, o espaço existe e deve existir.

A mente observa ou concebe a sucessão; e essa observação ou concepção desenvolve necessariamente a verdade primeira: o tempo existe e deve existir.

A medida que prosseguirmos vamos notar várias verdades que perten cem a essa classe, algumas das quais, em teoria, têm sido negadas. No entan to, em seus julgamentos práticos, todos os homens as têm aceitado e dado profundas evidências do fato de as conhecerem, tanto quanto têm conheci mento da existência deles próprios.

Suponham, por exemplo, que a lei da causalidade não fosse, jamais, em tempo algum, objeto de ponderação e atenção distinta. Suponham que a proposição, em palavras, "todo efeito deve ter uma causa", jamais estivesse em mente ou que tal proposição devesse ser negada. Ainda assim o conheci mento permanece ali, em forma de conhecimento absoluto, uma pressupo sição necessária, uma afirmação a priori, e a mente possui tamanha convicção dela que é totalmente incapaz de desconsiderar, esquecer ou negá-la na prática. Todas as mentes a tem por conhecimento certo muito antes de con seguir compreender a linguagem em que é expressa, e nenhuma declaração ou evidência, qualquer que seja, pode dar a elas convicção maior que a obti da primeiro pela necessidade. Isso se aplica a todas as verdades dessa clas se. Elas são sempre e necessariamente aceitas por todos os agentes morais, quer haja um pensamento distinto, quer não. E a maior parte dessa classe de verdades é aceita, sem que sejam com freqüência ou, pelo menos, em geral, objeto de ponderação ou atenção direta. A mente as pressupõe sem uma consciência distinta da pressuposição. Por exemplo, agimos a cada momen to e julgamos, raciocinamos e acreditamos na pressuposição de que cada efeito deve ter uma causa; ainda assim não temos consciência de ponderar acerca dessa verdade nem de pressupô-la, até que algo nos chame a atenção para ela.

Verdades primeiras da razão, portanto, que fique bem destacado, são sem pre e necessariamente aceitas, ainda que possa ser rara a ponderação acerca delas. Elas são de conhecimento universal antes de se compreenderem as pa lavras pelas quais são expressas; e embora possam ocorrer de jamais serem expressas numa proposição formal, ainda assim a mente possui um conheci mento certo delas tanto quanto possui da existência dela própria.

Todo raciocínio desenvolve-se na pressuposição dessas verdades. Preci sa fazê-lo necessariamente. É absurdo tentar provar verdades primeiras para um agente moral, pois, sendo um agente moral, já deve conhecê-las de ma neira absoluta e, caso contrário, não há meio pelo qual se consiga colocá-lo em posse delas, exceto pela apresentação da condição cronológica do de senvolvimento delas à sua percepção e em hipótese alguma seria necessário mais alguma coisa, pois com a ocorrência dessa percepção, segue-se a pres suposição ou o desenvolvimento, por uma lei de necessidade absoluta e universal. E até essas verdades serem de fato desenvolvidas, nenhum ser pode ser um agente moral.

Não se pode discutir com alguém que questione as primeiras verdades da razão e exija comprovação delas. Toda argumentação deve, pela natureza da mente e pelas leis do raciocínio, considerar certas e aceitas as verdades pri meiras da razão e como condição a priori de toda dedução e demonstração lógica. Algumas delas precisam ser consideradas verdades, de maneira direta ou indireta, em cada silogismo e em cada demonstração.

Em todas as nossas investigações futuras, teremos abundantes ocasiões para aplicar e ilustrar o que se disse agora acerca das verdades primeiras da razão. Se, em algum estágio de nosso progresso, lançarmos luz sobre uma verdade dessa classe, tenha-se em mente que a natureza da verdade é a preclusão, ou, como expressariam os advogados, a interdição de toda controvérsia.

Negar a realidade dessa classe de verdades é negar a validade de nosso mais perfeito conhecimento. A única dúvida a se elucidar é: a verdade em questão pertence a essa classe? Há muitas verdades que os homens, todos os homens, com certeza conhecem, acerca dos quais raramente pensam, mas que, em teoria, são persistentes em negar.

2. A segunda classe de verdades que não exigem prova são verdades mani festas, que possuem os atributos de necessidade e universalidade. Dessas verda des, destaco:

(1) Elas, como as verdades primeiras, são confirmadas pela razão pura e não pelo entendimento ou pelos sentidos.

(2) São confirmadas, como as verdades primeiras, a priori; ou seja, são per cebidas ou intuídas diretamente e não se chega a elas por evidências ou indução.

(3) São verdades de afirmação universal e necessária, quando expressas de maneira que sejam compreendidas. Por uma lei da razão, todos os homens sãos devem aceitar e confirmá-las à luz de evidências próprias, sempre que se as compreende.

Essa classe, ainda que manifesta quando apresentada à mente, não é, como as verdades primeiras, universal e necessariamente conhecida de todos os agentes morais. Os axiomas matemáticos e os princípios primeiros, as bases e princípios a priori de toda a ciência, pertencem a essa classe.

(4) São, como as verdades primeiras, universais no sentido de não haver exceção a elas.

(5) São verdades necessárias. Ou seja, a razão afirma, não só que são verda deiras, mas que precisam ser verdadeiras; que essas verdades não podem deixar de ser. O abstrato, o infinito pertencem a essa classe.

Para compelir outras mentes a aceitar essa classe de verdades, só precisa mos elaborar uma declaração tão perspicaz para elas, que possam ser perce bidas e compreendidas com clareza. Feito isso, todas as mentes sãs as confir mam irresistivelmente, quer o coração seja, quer não honesto o bastante para admitir a convicção.

3. Uma terceira classe de verdades que não exigem prova são verdades de intuição racional, mas não possuem os atributos de universalidade e necessidade.

Nossa existência, personalidade, identidade pessoal, etc, pertencem a essa classe. Essas verdades são intuídas pela razão, são manifestas e certas, como tais, na consciência; são conhecidas da própria pessoa, sem provas, e não se pode duvidar delas. Elas são primeiro desenvolvidas pela sensação, mas não inferidas dela. Suponham uma sensação a ser percebida pelos sentidos; tudo o que se poderia inferir logicamente disso é que existe algum recipiente dessa sensação, mas que eu existo e sou o recipiente dessa sensação, não surge logicamente. A sensação primeiro desperta a mente à consciência do eu; ou seja, uma sensação de algum tipo primeiro desperta a atenção da mente para os fatos da própria existência dela e da identidade pessoal. Essas verdades são percebidas e confirmadas diretamente. A mente não diz, sinto, ou penso, logo existo, pois isso é um mero sofisma; isso é pressupor a existência do eu como o recipiente do sentimento e depois inferir a existência do eu a partir do sentimento ou sensação.

4. Uma quarta classe de verdades que não exigem prova são as sensações. Já se observou que todas as sensações dadas pela consciência são manifestas para quem as sente. Se atribuo ou não minhas sensações à verdadeira causa delas é possível discutir, mas não se pode duvidar que a sensação é real. O testemunho dos sentidos é válido quanto ao que eles contemplam ou intuem de forma direta, ou seja, quanto à realidade da sensação. O julgamento pode enganar-se, atribuindo a sensação a uma causa errada.

Mas não devo prosseguir com esse discurso; meu objetivo não é entrar em muitos detalhes em distinções metafísicas sutis, nem, de maneira alguma, es gotar o assunto desta aula, mas só fixar a atenção nas distinções em que ve nho insistindo com o propósito de evitar todas as discussões irrelevantes e absurdas acerca da validade das verdades primeiras e manifestas. Devo pres supor que vocês possuem algum conhecimento de psicologia e filosofia men tal, e deixo a seu critério um exame mais completo e extenso do assunto só insinuado nesta preleção.

O suficiente, creio, foi dito a fim de preparar a mente de vocês para a ins trução dos grandes e fundamentais axiomas que se colocam no fundamento de todas as nossas idéias de moralidade e religião. Nossa próxima aula apre sentará a natureza e os atributos da lei moral. Prosseguiremos à luz das afir mações a priori da razão, ao postular sua natureza e atributos. Tendo chegado a um terreno firme quanto a esses pontos, devemos ser naturalmente condu zidos pela razão e pela revelação a nossas conclusões últimas.

 

 

 

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