A VERDADE DO EVANGELHO
TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Charles Finney

 

AULA 16

DEPRAVAÇÃO MORAL

 

Ao discutir o tema da depravação humana, devo:

Definir o termo depravação.

A palavra deriva do latim, de e pravus. Pravus significa "perverso". De é intensivo. Depravus literal e originalmente significa "muito perverso", não no sentido de perversidade original ou inata, mas no sentido de ter-se tornado perverso. O termo não implica má formação original, mas o que deslizou, decaiu ou afastou-se do correto ou direito. A palavra sempre implica deterioração ou decadência de um estado anterior de perfeição moral ou física.

A depravação sempre implica um distanciamento de um estado de integridade original ou da conformidade com as leis por parte do ser sujeito à depravação. Assim, não devemos considerar depravado o ser que permaneceu num estado de conformidade com as leis originais do ser, físicas e morais. Mas é justo que consideremos depravado o ser que afastou-se da conformidade com essas leis, sejam elas físicas, sejam morais.

 

Destacar a distinção entre depravação física e moral.

A depravação moral, conforme denota a palavra, é a depravação da constituição ou substância, conforme se distingue da depravação da ação moral livre. Ela pode dizer respeito ao corpo ou à mente. A depravação física, quando atributo do corpo, é em geral corretamente chamada doença. Ela consiste num distanciamento físico das leis da saúde; um estado degenerado ou decaído em que não se mantém uma ação orgânica saudável. Quando a depravação física é atributo da mente, entende-se que as faculdades mentais, seja em substância, seja em conseqüência de sua conexão com o corpo ou dependência dele, encontram-se num estado enfermo, decaído, degenerado, de modo que a ação sadia dessas faculdades não se mantém.

A depravação física, sendo depravação da substância, em contraste com a depravação dos atos de livre-arbítrio, pode não ter caráter moral. Como veremos, ela pode ser causada por depravação moral; e um ser moral pode ser culpado por se tornar fisicamente depravado, seja no corpo, seja na mente. Mas a depravação física, seja do corpo, seja da mente, pode não possuir caráter moral intrínseco, pelo simples fato de ser involuntário e, por natureza, uma enfermidade, não um pecado. Não se esqueçam disso.

A depravação moral é a depravação do livre-arbítrio, não da faculdade em si, mas de sua livre ação. Ela consiste numa violação da lei moral. A depravação da vontade, como uma faculdade, é ou seria física, não depravação moral. Seria depravação de substância, não de escolha livre, responsável. A depravação moral é uma depravação de escolha. E uma escolha em desacordo com a lei moral, o direito moral. É sinônimo de pecado ou pecaminosidade. E depravação moral, porque consiste numa violação da lei moral e porque possui caráter moral.

 

O que está sujeito à depravação física.

1. Qualquer substância organizada pode estar sujeita a ela. Ou seja, toda substância organizada é passível de tornar-se depravada. A depravação é um estado possível de todo corpo organizado ou substância que tenha existência.

2. A depravação física pode atingir a mente, conforme já se disse, especialmente em sua ligação com um corpo organizado. Uma vez que a mente, em ligação com o corpo, manifesta-se por meio dela, age por meio dela e depende dela, é claro que se o corpo torna-se enfermo ou fisicamente depravado, a mente não pode deixar de ser afetada por esse estado do corpo, por intermédio e por meio do qual ela age. Em tais casos, não é razoável esperar manifestações normais da mente. Ou seja, os atos e estados do intelecto podem tornar-se desordenados, depravados, enlouquecidos ou decaídos em relação ao estado de integridade e saúde. Disso todos sabem, uma vez que é objeto da experiência e observação diária. Se isso é e deve ser causado, em todos os casos, pelo estado da organização do corpo, ou seja, se deve sempre e necessariamente ser atribuído ao estado depravado do cérebro e do sistema nervoso, é-nos impossível saber. Pode, pelo que sabemos, em alguns casos ao menos, ser uma depravação ou desarranjo da substância da própria mente.

A sensibilidade, ou sentimento à parte da mente, pode ser depravada de maneira deplorável e física. Trata-se de uma questão da experiência comum. Os apetites e paixões, os desejos e anseios, as antipatias e repugnâncias dos sentimentos entram em grande desordem e anarquia. Geram-se numerosos apetites artificiais, e toda a sensibilidade torna-se um deserto, um caos de desejos, emoções e paixões conflitantes e clamorosos. Que esse estado da sensibilidade é com freqüência e, em algum sentido, sempre causado pelo estado do sistema nervoso com que está ligado, pelo qual se manifesta, não deve haver dúvida. Mas que isso ocorre sempre e necessariamente, ninguém pode contestar. Sabemos que a sensibilidade manifesta grande depravação física. Se essa depravação pertence exclusivamente ao corpo ou à mente ou a ambos em conjunção, não me aventuro a afirmar. No presente estado de nosso conhecimento ou de meu conhecimento, não ouso arriscar uma afirmação sobre o assunto. O corpo humano encontra-se certamente num estado de depravação física. Mas observem que a depravação física em situação alguma possui algum caráter moral, porque é involuntária.

 

O que está sujeito à depravação moral.

1. Não a substância; pois sobre a substância involuntária a lei moral não legisla de maneira direta.

2. Nenhum ato involuntário ou estado da mente pode estar sujeito à depravação moral. Com certeza não podem ser violações da lei moral, à parte da intenção última; pois a lei moral só legisla diretamente sobre escolhas livres e inteligentes.

3. A depravação moral não pode ser atribuída a qualquer ato não inteligente da vontade, ou seja, a atos da vontade executados num estado de idiotice, ou de insanidade mental ou de sono. A depravação moral implica obrigações morais; a obrigação moral implica agência moral; e a agência moral implica inteligência ou conhecimento das relações morais. A agência moral implica lei moral ou o desenvolvimento da idéia de dever e um conhecimento do que seja esse dever.

4. A depravação moral só pode ser atribuída a violações da lei moral e às volições voluntárias pelas quais essas violações são perpetradas. A lei moral, conforme vimos, requer amor, e somente amor, a Deus e aos homens, ou a Deus e ao universo. Esse amor, conforme vimos, é boa vontade, escolha, a escolha de um fim, a escolha do máximo bem-estar de Deus e do universo de existências sensíveis.

A depravação moral é pecado. O pecado é uma violação da lei moral. Vimos que o pecado deve consistir em escolha, na escolha da indulgência ou da gratificação própria como um fim.

5. A depravação moral não pode consistir em algum atributo da natureza ou constituição, nem em algum estado deteriorado da natureza; pois isso é depravação física e não moral.

6. Ela não pode consistir em algo que seja parte original e essencial da mente ou do corpo; nem em algum ato ou estado involuntário da mente ou do corpo.

7. Ela não pode consistir em algo por trás da escolha e mantenha com a escolha uma relação de causa. Tudo o que esteja por trás da escolha está fora do âmbito da legislação. A lei de Deus, conforme se disse, só requer boa vontade; e, com certeza, nada que não seja um ato da vontade pode constituir-se violação da lei moral. Atos externos e pensamentos e sentimentos involuntários podem ser, em certo sentido, considerados possuídos de caráter moral por serem produzidos pela vontade. Mas, estritamente falando, o caráter moral só diz respeito à escolha ou intenção.

Demonstrou-se em aula anterior que o pecado não consiste nem pode consistir em malevolência, propriamente dita, ou na escolha do pecado ou da aflição como um fim, ou por si. Também se demonstrou que todo pecado consiste e deve consistir em egoísmo ou na escolha da gratificação própria como um fim último. A depravação moral, portanto, no sentido estrito, só pode ser atribuída a uma intenção última egoísta.

A depravação moral, segundo o emprego que dou ao termo, não consiste em natureza pecaminosa nem a implica, no sentido de que a substância da alma humana seja pecaminosa em si. Não se trata de uma pecaminosidade constitutiva. Não é uma pecaminosidade involuntária. A depravação moral, conforme entendo, consiste em egoísmo; num estado de comissão voluntária da vontade à gratificação própria. E um espírito de egocentrismo, uma dedicação voluntária completa à satisfação de si mesmo. É uma intenção última egoísta; é a escolha de um fim errado de vida; é depravação moral porque é uma violação da lei moral. É uma recusa em dedicar todo o ser ao máximo bem-estar de Deus e do universo e à obediência à lei moral, consagrando-o à gratificação própria. A depravação moral mantém com a vida externa uma relação de causa. Essa intenção egoísta, ou a vontade nesse estado de compromisso, é claro, esforça-se por obter seu fim, e esses esforços formam a vida exterior do egoísta. A depravação moral é pecaminosidade, não de natureza, mas de estado voluntário. E um estado de comprometimento pecaminoso da vontade à indulgência própria. Não se trata de uma natureza pecaminosa, mas de um coração pecador. É um objetivo último ou intenção pecaminosa. O termo grego amartia, traduzida pecado em nossa Bíblia, significa errar o alvo ou almejar o fim errado. O pecado é um alvo ou uma intenção errada. É almejar ou intentar a satisfação própria como o fim último e supremo da vida, em lugar de almejar, como requer a lei moral, o máximo bem do ser universal como o fim da vida.

 

A humanidade é física e moralmente depravada.

1. Não há, provavelmente, uma saúde física perfeita entre todos os níveis e classes de seres humanos que habitam este mundo. A organização física de toda a raça foi prejudicada e, sem dúvida alguma, tem-se prejudicado mais e mais, uma vez que intemperanças de todo tipo foram introduzidas em nosso mundo. Isso é ilustrado e confirmado pela relativa brevidade da vida humana. Isso é um fato fisiológico.

2. Uma vez que a mente humana neste estado de existência depende do corpo para todas as suas manifestações, e uma vez que o corpo humano encontra-se universalmente num estado de maior ou menor depravação ou enfermidade física, segue-se que as manifestações da mente, desse modo dependentes de uma organização fisicamente depravada, serão manifestações fisicamente depravadas. Isso é mais evidente na sensibilidade humana. Os apetites, paixões e propensões encontram-se num estado de enorme desenvolvimento não saudável. Isso é muito evidente e notório em âmbito universal, não sendo necessário provar ou ilustrar. Todas as pessoas ponderadas já observaram que a mente humana é muito desequilibrada em conseqüência do desenvolvimento monstruoso da sensibilidade. Os apetites, paixões e propensões são satisfeitos pelo egoísmo, enquanto a inteligência e a consciência são por ele estultificados. O egoísmo, lembrem-se, consiste numa disposição ou opção de gratificar propensões, desejos e sentimentos. É evidente e necessário que isso produza exatamente os desenvolvimentos insanos e monstruosos que vemos diariamente: às vezes uma paixão domina ou algum apetite governa, não só a inteligência e a vontade, mas todos os outros apetites e paixões, esmagando e sacrificando todos eles sobre o altar de sua própria gratificação. Veja aquele infeliz inchado, o ébrio! Seu apetite por bebidas fortes age como déspota. Toda sua mente e corpo, reputação, família, saúde, tempo, eternidade; o jogador, o avarento e uma multidão de outros, cada um a seu modo, é uma prova contundente e melancólica do desenvolvimento monstruoso e da depravação física da sensibilidade humana.

3. Que os homens são moralmente depravados é um dos fatos notórios da experiência, observação e história humana. Aliás, não tenho conhecimento de que alguma vez já se tenha levantado alguma dúvida quando se compreende a depravação como algo que consiste em egoísmo. A depra-vação moral da raça humana é pressuposta em toda parte e declarada na Bíblia, e é tão universal e notório o fato do egoísmo humano, que caso alguém duvidasse disso na prática -- caso, em suas transações comerciais e em seu relacionamento com os homens, supusesse o contrário, seria justo que fosse sujeitado à acusação de insanidade. Não há no mundo fato mais notório e inegável que esse. A depravação moral humana é tão palpavelmente óbvia quanto a existência humana. Trata-se de um fato pressuposto em todas as partes, em todos os governos, em todas as organizações da sociedade, e tem calcado sua imagem e escrito seu nome sobre tudo o que é humano.

 

Subseqüente ao início da agência moral e anterior à regeneração, a depravação moral da humanidade é universal.

 

Com isso não se quer negar que, em alguns casos, o Espírito de Deus possa, desde o primeiro momento da agência moral, iluminar a mente de tal modo que garanta a conformidade com a lei moral, como o primeiro ato moral. Isso pode ser ou não verdade. No presente, não tenho por propósito afirmar ou negar isso como possibilidade ou como fato.

Mas entende-se que cada agente moral de nossa raça é, desde o raiar da agência moral até o momento da regeneração pelo Espírito Santo, moralmente depravado, a menos que consideremos os casos possíveis acima aludidos. A Bíblia apresenta provas disso:

1. Naquelas passagens que apresentam todos os irregenerados como pessoas que possuem em comum coração ou caráter perverso. "E viu o SENHOR que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente" (Gn 6.5); "Este é o mal que há entre tudo quanto se faz debaixo do sol: que a todos sucede o mesmo; que também o coração dos filhos dos homens está cheio de maldade; que há desvarios no seu coração, na sua vida, e que depois se vão aos mortos" (Ec 9.3); "Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o conhecerá?" 0r 17.9); "Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser" (Rm 8.7).

2. Naquelas passagens que declaram a necessidade universal de regeneração. "Jesus respondeu e disse-lhe: Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus" (Jo 3.3).

3. Passagens que asseveram explicitamente a depravação moral universal de todos os agentes morais irregenerados de nossa raça. "Pois quê? Somos nós mais excelentes? De maneira nenhuma! Pois já dantes demonstramos que, tanto judeus como gregos, todos estão debaixo do pecado, como está escrito: Não há um justo, nem um sequer. Não há ninguém que entenda; não há ninguém que busque a Deus. Todos se extraviaram e juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só. A sua garganta é um sepulcro aberto; com a língua tratam enganosamente; peçonha de áspides está debaixo de seus lábios; cuja boca está cheia de maldição e amargura. Os seus pés são ligeiros para derramar sangue. Em seus caminhos há destruição e miséria; e não conheceram o caminho da paz. Não há temor de Deus diante de seus olhos. Ora, nós sabemos que tudo o que a lei diz aos que estão debaixo da lei o diz, para que toda boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus. Por isso, nenhuma carne será justificada diante dEle pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado" (Rm 3.9-20).

4. A história universal o prova. Que é a história do mundo, senão a desavergonhada crônica da perversão humana?

5. A observação universal o atesta. Quem já viu algum ser humano irregenerado que não fosse egoísta, que não obedecesse a seus sentimentos em lugar da lei de sua inteligência, que não estivesse de alguma forma ou de algum modo vivendo para agradar a si mesmo? Tal ser humano irregenerado, posso afirmar com segurança, jamais foi visto desde a queda de Adão.

6. Também posso apelar para a consciência universal dos irregenerados. Eles sabem que são egoístas, que almejam agradar a si mesmos e não podem negar isso honestamente.

 

A depravação moral dos agentes morais irregenerados de nossa raça é total.

 

Com isso entende-se que a depravação moral dos irregenerados não contém qualquer mistura de bondade ou virtude, que enquanto permanecerem irregenerados, jamais, em circunstância alguma e em grau algum, exercerão amor a Deus e aos homens. Não se entende que não possam realizar muitos atos exteriores e manifestar muitos sentimentos interiores como os realizados e experimentados pelos regenerados: sendo isso também considerado virtude por aqueles que atribuem virtude aos atos exteriores. Mas entende-se que a virtude não consiste nem em sentimentos involuntários nem em atos interiores, e que consiste só na inteira consagração do coração e da vida a Deus e ao bem do ser, e que nenhum pecador irregenerado, antes da regeneração, encontra-se ou pode encontrar-se, por um instante que seja, nesse estado.

Quando a virtude é claramente vista como algo que consiste na consagração total do coração a Deus e ao bem do ser, deve-se ver que os irregenerados não podem estar, por um momento que seja, nessa condição. É impressionante que alguns filósofos e teólogos tenham aceitado e defendido que os irregenerados às vezes fazem algo verdadeiramente virtuoso. Mas nessas admissões necessariamente aceitam uma falsa filosofia e desconsideram aquilo em que toda virtude consiste e deve consistir, a saber, a intenção última suprema. Eles falam de atos virtuosos e de sentimentos virtuosos, como se a virtude consistisse nisso, e não na intenção.

Henry P. Tappam, por exemplo, escritor na maior parte do tempo capaz, veraz e belo, assume, ou, antes, afirma que as volições podem ser manifestas à parte e contrárias à escolha presente de um fim e que, por conseguinte, pecadores irregenerados, os quais ele admite estarem no exercício de uma escolha egoísta de um fim, podem manifestar e às vezes manifestam volições corretas e executam ações corretas, ou seja, corretas no sentido de atos virtuosos. Mas examinemos esse assunto. Vimos que toda escolha e toda volição deve dizer respeito ou a um fim ou a um meio, ou seja, que tudo que seja desejado ou escolhido é desejado ou escolhido por algum motivo. Negar isso é o mesmo que negar que algo seja desejado ou escolhido porque a razão última para uma escolha e o objeto escolhido são idênticos. Assim, fica claro, como foi demonstrado em aula anterior, que a vontade não pode abraçar ao mesmo tempo dois fins opostos e que, enquanto um fim for escolhido, ela não poderá manifestar volições para obter algum outro fim, fim este que ainda não tenha sido escolhido. Em outras palavras, é certamente absurdo dizer que a vontade, enquanto mantém a escolha de um fim, pode usar os meios para a obtenção de outro fim oposto.

Quando um fim é escolhido, essa escolha confina toda volição para obter seu cumprimento, e nesse ínterim e até que outro fim seja escolhido, e esse primeiro abandonado, é impossível a vontade manifestar qualquer volição inconsistente com a escolha atual. Segue-se, portanto, que enquanto os pecadores forem egoístas ou irregenerados, é impossível para eles manifestar uma volição santa. Eles têm necessidade de primeiro mudar o coração ou a escolha de um fim, antes de poderem manifestar alguma volição para obter algum fim que não seja egoísta. E essa é a clara filosofia pressuposta em toda a Bíblia. Ela é uniforme em apresentar os irregenerados como pessoas totalmente depravadas e os convoca ao arrependimento, para obterem para si um novo coração; e jamais admite de maneira direta ou por implicação que possam fazer algo bom ou aceitável a Deus enquanto estiverem no exercício de um coração perverso ou egoísta.

 

Consideramos o método apropriado para explicar a depravação moral universal e total dos agentes morais irregenerados de nossa raça.1

 

Na discussão desse assunto, irei:

1. Empenhar-me para mostrar como ela não deve ser explicada.

Ao examinar essa parte do assunto, é necessário ter em mente de maneira nítida o que constitui a depravação moral. Todos os erros existentes acerca do assunto são fundados em pressuposições falsas com respeito à natureza ou essência da depravação moral. E quase que universalmente verdade que não se faz uma distinção entre depravação moral e física e, por conseguinte, a depravação física é confundida com a depravação moral e tratada como esta. Isso, é claro, tem levado a uma vasta confusão e disparates a esse respeito. É preciso que esse fato, demonstrado em aulas anteriores, seja mantido bem claro na mente.

 

Que a depravação moral consiste em egoísmo ou na escolha do interesse próprio, da gratificação pessoal ou indulgência própria como um fim.

 

Por conseguinte, não pode consistir

(1) Numa constituição pecaminosa ou num apetite ou anelo constitutivo pelo pecado. Isso foi demonstrado em uma aula anterior sobre o que está implícito na desobediência à lei moral.

(2) A depravação moral é pecado em si e não a causa do pecado. Não é algo anterior ao pecado, algo que mantenha com ele a relação de causa, mas a essência e a totalidade do pecado.

(3) Ela não pode ser um atributo da natureza humana considerado simplesmente como tal, pois isso seria depravação física, não moral.

(4) Não se deve, portanto, explicar a depravação atribuindo-a à natureza ou constituição pecaminosa em si. Falar de natureza pecaminosa ou constituição pecaminosa, no sentido de pecaminosidade física, é atribuir a pecaminosidade ao Criador, o autor da natureza. Isso é desconsiderar a natureza essencial do pecado e fazer do pecado um vírus físico, em vez de uma escolha voluntária e responsável. Tanto a filosofia sadia como a Bíblia entendem que o pecado consiste em obedecer à carne ou ao espírito de satisfação própria ou indulgência própria, ou, o que eqüivale a dizer, em egoísmo -- numa mente carnal ou em dar ouvidos à carne. Mas autores que escrevem sobre depravação moral têm entendido que a depravação moral é distinta do pecado e causador dele, ou seja, da transgressão de fato. Eles o chamam pecado original, pecado residente, natureza pecaminosa, apetite pelo pecado, atributo da natureza humana e assim por diante. Veremos agora a que tem levado essa concepção acerca do tema.

Observarei em seguida uma concepção moderna e, talvez, muito popular desse assunto, a qual tem sido adotada por qualquer escritor recente que tenha caído no erro de confundir depravação física e moral. Refiro-me ao ensaio premiado do Dr. Woods, de Andover, Massachusetts. Ele define depravação moral como "pecaminosidade". Ele também, em uma parte de seu ensaio, sustenta e afirma que ela é sempre necessariamente voluntária. Ainda, seu grande esforço é para provar que a pecaminosidade ou depravação moral é um atributo da natureza humana. Não faz parte de meu propósito expor a inconsistência de sustentar que a depravação moral é um estado voluntário da mente e, ainda assim, um atributo natural, mas só examinar a filosofia, a lógica e a teoria desse seu argumento principal. A seguinte citação mostrará em que sentido ele sustenta que a depravação moral pertence à natureza do homem. Na página 54 afirma:

"A palavra depravação, conforme aqui relacionada com o caráter moral do homem, significa o mesmo que pecaminosidade, sendo o oposto da pureza moral ou santidade". Existe ampla concordância quanto a esse uso da palavra. Mas qual o significado de nativo ou natural? Entre a variedade de significados especificados por Johnson, Webster e outros, refiro-me ao seguinte como o que diz respeito em particular ao assunto que temos diante de nós.

Nativo. Produzido pela natureza. Natural ou que esteja de acordo com a natureza; congênito; original. Natural possui em substância o mesmo significado: 'produzido pela natureza; não adquirido'. --Assim também Crabbe: 'De uma pessoa dizemos: seu valor é nativo, para designá-lo como alguma propriedade valiosa nascida com ele, não estranha a ele ou nele implantada; mas dizemos de sua disposição que é natural, em oposição ao que é adquirido por hábito'. E Johnson define a natureza como 'o estado ou propriedades nativos de algo, pelos quais ele é discriminado dos outros'. Ele cita a definição de Boyle: 'Natureza às vezes significa aquilo que diz respeito a uma criatura viva em seu natalício ou nele resulta por nascimento, como quando dizemos que um homem é nobre por natureza ou uma criança é naturalmente voluntariosa'. 'Isso', diz ele, 'pode ser expresso pela frase: o homem assim nasceu'.

"Após essas breves definições que dizem quase a mesma coisa, passo a inquirir quais as marcas ou evidências que mostram ser algo natural ou nativo em um homem e até que ponto encontram-se essas marcas em relação à depravação."

De novo, página 66, afirma:

"O mal, portanto, não pode ser suposto originário em alguma circunstância externa desfavorável, tal como exemplos corruptores ou tentações fortes e insinuantes; pois se os supuséssemos inteiramente removidos, todos os seres humanos ainda seriam pecadores. Com uma natureza moral tal como a têm agora, não esperariam por tentações fortes para pecar. Antes, seriam pecadores em oposição aos mais fortes motivos em contrário. Aliás, sabemos que os seres humanos transformarão em ocasiões para pecar os próprios motivos que com maior vigor instam à santidade. Ora, será que a confiança e certeza com que predizemos a comissão do pecado, e do pecado sem nenhum traço de pureza moral, não pressupõe uma plena convicção em nós, e uma convicção que se baseia naquilo que consideramos evidência satisfatória, de que o pecado, em todos os seus atos visíveis, brota daquilo que está na própria mente e que diz respeito a nossa própria natureza como seres morais? Não temos evidência suficiente de que é isso o que ocorre com o mal moral, bem como com qualquer de nossas afeições naturais ou apetites físicos?"

Essa citação, juntamente com todo o argumento, mostra que ele considera a depravação moral um atributo da natureza humana, no mesmo sentido que os apetites e as paixões. Antes de passar diretamente ao exame de seu argumento de que a pecaminosidade, ou depravação moral, é "um atributo da natureza humana", devo postular que um argumento ou fato que bem possa fundamentar-se em duas teorias opostas não pode provar qualquer uma delas. O autor em questão apresenta os seguintes fatos e considerações em apoio a sua posição chave de que a depravação moral, ou pecaminosidade, é um atributo da natureza humana, e três presidentes de faculdades endossam a integridade e caráter conclusivo do argumento.

Ele prova sua posição -- primeiro a partir da "universalidade da depravação moral". A isso respondo que esse argumento nada prova acerca da questão, a menos que seja verdade e pressuposto como premissa principal que tudo o que seja universal na raça humana deve ser um atributo natural do homem como tal; que tudo o que seja comum a todos os homens deve ser um atributo da natureza humana. Mas essa pressuposição incorre em petição de princípio. O pecado pode ser o resultado da tentação; a tentação pode ser universal e de tal natureza que resulte uniformemente, mas não necessariamente, em pecado, a menos que um resultado contrário seja garantido por uma persuasão moral divina. Isso empenhar-me-ei por demonstrar ser fato. Esse argumento pressupõe que só há um método responsável pelo caráter universal da pecaminosidade humana. Mas essa é questão em debate, e assim não deve ser considerada verdade.

De novo: O egoísmo é comum a todos os homens irregenerados. Seria o egoísmo um atributo natural? Vimos em aula anterior que o egoísmo consiste em escolha. É possível uma escolha ser atributo da natureza humana?

De novo: Esse argumento é igualmente coerente como a teoria oposta, a saber, que a depravação moral é egoísmo. A universalidade do egoísmo é exatamente o que se deve esperar que seja, caso o egoísmo consista na comissão da vontade à gratificação própria. Isso será o óbvio, a menos que o Espírito Santo se interponha de maneira grandiosa para iluminar o intelecto e quebre a força do hábito, mudando a atitude da vontade já no primeiro raiar da razão, comprometida com os impulsos da sensibilidade. Se a depravação moral deve ser explicada, como demonstrarei plenamente a seguir, como resultado da influência da tentação ou a uma constituição física depravada rodeada pelas circunstâncias em que a humanidade primeiro forma seu caráter moral ou primeiro manifesta sua escolha moral, a universalidade pode, é claro, ser entendida como uma de suas características. Esse argumento, portanto, concordando igualmente bem com as duas teorias, não prova qualquer uma delas.

Seu segundo argumento é que "A depravação moral desenvolve-se no início da vida". Resposta:

Isso é exatamente o que se pode esperar da teoria oposta. Se a depravação moral consiste na escolha da satisfação própria, ela, é claro, apareceria no início da vida. Assim, esse argumento concorda igualmente bem com a teoria oposta e, portanto, nada prova. Mas -- esse argumento para nada serve, a menos que o seguinte seja pressuposto como premissa maior e a menos que o fato pressuposto seja mesmo verdade, a saber: "Tudo o que seja desenvolvido no início da vida deve ser um atributo da natureza humana". Mas, de novo, isso é pressupor a verdade do ponto em questão. Esse argumento é baseado na pressuposição de que um curso de ação comum a todos os homens e que se inicia no primeiro momento de sua agência moral só pode ser explicado quando se o imputa a um atributo da natureza, tendo o mesmo caráter moral daquele que pertence às próprias ações. Mas isso não é verdade. Pode haver mais de um modo de explicar a pecaminosidade universal dos atos humanos desde o raiar da agência moral. Ela pode ser atribuída à natureza universal e peculiar da tentação, conforme se disse.

Seu terceiro argumento é que "a depravação moral não se deve a nenhuma mudança que ocorra subseqüentemente ao nascimento". Resposta:

Não, as circunstância da tentação são suficientes para explicá-la sem que se suponha que a natureza seja mudada. Esse argumento nada prova, a menos que seja verdade que as circunstâncias peculiares da tentação sob a qual o agente moral atua desde o raiar da agência moral não pode explicar suficientemente sua conduta, sem que se suponha uma mudança de natureza subseqüente ao nascimento. O que, portanto, se prova com esse argumento?

De novo, esse argumento é igualmente coerente com a teoria oposta e, portanto, nada prova.

Seu quarto argumento é que "a depravação moral age de maneira livre e espontânea". Resposta:

"O agente moral age com liberdade e age de maneira egoísta, ou seja, de maneira perversa. Esse argumento pressupõe que se um agente moral age de modo livre e perverso, a depravação moral, ou pecado, deve ser um atributo de sua natureza. Ou, sendo mais exato, se os seres humanos, universalmente, no exercício de sua liberdade, agem de maneira pecaminosa, a pecaminosidade deve ser um atributo da natureza humana". Mas que é pecado? Ora, o pecado é uma transgressão voluntária da lei, segundo julga o Dr. Woods. E possível uma transgressão voluntária da lei ser denominada um atributo da natureza humana?

Mas, de novo, esse argumento nada alega, senão o que é igualmente coerente com a teoria oposta. Se a depravação moral consiste na escolha da gratificação própria como um fim, ela obviamente manifestar-se-ia de maneira livre e espontânea. Esse argumento, por conseguinte, para nada serve.

Seu quinto argumento é que "É difícil vencer a depravação moral e, portanto, ela deve ser um atributo da natureza humana".

Se fosse um atributo da natureza humana, não poderia ser vencida de modo algum, sem uma mudança na constituição humana. E difícil vencê-la, assim como ocorreria naturalmente com o egoísmo em seres de uma constituição fisicamente depravada e na presença de tantas tentações à indulgência própria. Se fosse um atributo da natureza humana, não seria possível vencê-la sem uma mudança na identidade pessoal. Mas o fato de que pode ser vencida sem que se destrua a consciência de identidade pessoal; prova que não se trata de um atributo da natureza humana.

Seu sexto argumento é que "podemos predizer com certeza que no devido tempo ela irá manifestar-se". Resposta:

Exatamente como se espera. Se a depravação moral consiste em egoísmo, podemos predizer com certeza que o espírito de satisfação própria irá manifestar-se no devido tempo e em todo o tempo. Podemos também predizer, sem o dom da profecia, que com a constituição fisicamente depravada e rodeado com objetos para despertar o apetite e com todas as circunstâncias em que os seres humanos primeiro formam seu caráter moral, eles buscarão, de modo universal, a satisfação própria, a menos que impedidos pela iluminação do Espírito Santo. Esse argumento é igualmente coerente com a teoria oposta e, portanto, nada prova.

É desnecessário ocupar mais tempo com o tratado do Dr. Woods. Citarei agora os padrões da Igreja Presbiteriana que lhes darão posse das opiniões dela a respeito desse assunto. Às páginas 30, 31 da Confissão de Fé Presbiteriana temos o seguinte: "Por esse pecado, eles (Adão e Eva) caíram de sua justiça original e da comunhão com Deus e assim tornaram-se mortos no pecado e totalmente corrompidos em todas as faculdades e partes da alma e do corpo. Sendo eles a semente de toda a humanidade, a culpa desse pecado foi imputado, e a mesma morte no pecado e natureza corrompida foi transmitida a toda sua posteridade, descendendo deles por geração ordinária. Dessa corrupção original, pela qual somos completamente incapacitados, aleijados e tornados opostos a todo o bem e totalmente inclinados a todo o mal, procedem todas as reais transgressões".

De novo, as páginas 152-154, Catecismo Breve. "Pergunta 22. Toda a humanidade caiu naquela primeira transgressão? Resposta: Uma vez que a aliança foi feita com Adão como pessoa pública, não só por ele mesmo, mas por sua posteridade; toda a humanidade descendendo dele por geração ordinária, pecou nele e caiu com ele naquela primeira transgressão.

"Pergunta 23. A que estado a queda levou a humanidade? Resposta: A queda levou a humanidade a um estado de pecado e aflição.

"Pergunta 24. Que é pecado? Resposta: Pecado é toda falta de conformidade ou transgressão a qualquer lei de Deus dada como uma regra para a criatura racional.

"Pergunta 25. Em que consiste a pecaminosidade daquele estado em que caiu o homem? Resposta: A pecaminosidade daquele estado em que caiu o homem consiste na culpa do primeiro pecado de Adão, a falta daquela justiça em que foi criado e a corrupção de sua natureza, pela qual ele é completamente incapacitado, aleijado e tornado oposto a tudo o que seja espiritualmente bom e totalmente inclinado a todo mal e isso continuamente, o que é comumente chamado pecado original e de onde procedem todas as transgressões reais.

"Pergunta 26. Como o pecado original é transmitido de nossos primeiros pais à sua posteridade? Resposta: O pecado original é transmitido de nossos primeiros pais à sua posteridade por geração natural, de modo que todos os que deles procedem desse modo são concebidos e nascidos em pecado."

Esses extratos mostram que os estruturadores e defensores dessa confissão de fé explicam a depravação moral da humanidade entendendo-a como natureza pecaminosa herdada de Adão por geração natural. Eles consideram a constituição herdada de Adão em si pecaminosa e causa de todas as transgressões reais. Eles não fazem qualquer distinção entre depravação física e moral. Eles também fazem distinção entre pecado original e pecado real. O pecado original é a pecaminosidade da constituição, em que a posteridade de Adão não tem opção, senão herdá-la por geração natural ou por nascimento. Esse pecado original ou natureza pecaminosa torna a humanidade completamente incapaz de tudo o que seja espiritualmente bom e totalmente inclinada a tudo o que seja mal. Essa é a explicação da depravação moral. Isso, ver-se-á, é em grande parte a base para o Dr. Woods:

É comum os que confundem depravação física e moral e sustentam que a natureza humana é em si pecaminosa citarem passagens das Escrituras para apoiar sua posição. Um exame desses textos deve ocupar nossa atenção em seguida. Mas antes de entrar nesse exame, devo primeiro chamar-lhes a atenção para certas regras bem estabelecidas de interpretação bíblica.

(1) Diferentes passagens devem ser interpretadas como tais, caso possível, para que não se confundam entre si.

(2) A linguagem deve ser interpretada de acordo com o assunto do discurso.

(3) Deve-se sempre respeitar o âmbito e desígnio geral do orador ou escritor.

(4) Os textos coerentes com uma e outra teoria não provam nem uma nem outra.

(5) A linguagem deve ser interpretada de tal modo, caso possível, que não entre em conflito com a sã filosofia, questões de fato, a natureza das coisas ou a justiça imutável.

Passemos agora, lembrando e aplicando essas regras simples de sã interpretação, ao exame daquelas passagens que se supõem estabelecer a teoria da depravação que analiso.

"E Adão viveu cento e trinta anos, e gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem, e chamou o seu nome Sete" (Gn 5.3). Não é muito fácil ver por que esse texto deve ser colocado a serviço daqueles que sustentam que a natureza humana é em si pecaminosa. Por que se deve pressupor que a semelhança e a imagem aqui mencionadas era uma semelhança ou imagem moral? Mas, a menos que isso seja suposto, o texto não tem relação alguma com o assunto.

De novo: é em geral aceito que há toda probabilidade de que Adão era regenerado no momento e antes do nascimento de Sete. Entende-se que Adão gerou um santo ou um pecador? Se, como suponho, Adão era um santo de Deus, se esse texto de algum modo tem esse propósito, afirma que Adão gerou um santo. Mas esse é o oposto daquilo para o que esse texto é citado como prova.

Outro texto é: "Quem do imundo tirará o puro? Ninguém!" (Jó 14.4). Esse texto é citado em apoio à posição da Confissão de Fé Presbiteriana de que as crianças herdam de seus pais, por geração natural, uma natureza pecaminosa. Quanto a esse texto observo que tudo o que podemos fazer com ele, mesmo que o leiamos sem considerar a tradução e o contexto, é que o pai fisicamente depravado produzirá um descendente fisicamente depravado. Que esse é seu verdadeiro sentido é bem evidente quando observamos o contexto. Jó está tratando do estado frágil e moribundo do homem, sendo manifesto que no texto e contexto seus olhos estão totalmente voltados para o estado físico, não para o caráter moral do homem. O que ele quer dizer é: quem pode gerar outra coisa senão uma geração frágil e moribunda de um pai frágil e moribundo? Ninguém. Essa é em essência a idéia que o professor Stuart faz do texto. O máximo que se pode dizer a respeito dele é que pertencendo a uma raça de pecadores, nada mais se podia esperar, senão que fosse pecador, não havendo sentido em afirmar algo com respeito ao quo modo desse resultado.

De novo: "Que é o homem, para que seja puro? E o que nasce da mulher, para que fique justo?" (Jó 15.14).

Essas são as palavras de Elifaz, sendo impróprio citá-las como verdade inspirada. Pois o próprio Deus testifica que os amigos de Jó não detinham a verdade. Mas, suponham que recebamos o texto como verdade, qual sua implicação? Ora, ele simplesmente afirma ou, antes, implica, a justiça ou pecaminosidade de toda a raça humana. Ela expressa a universalidade da depravação humana, na forma muito comum de incluir todos os que são nascidos de mulher. Isso certamente nada afirma e nada implica a respeito de uma constituição pecaminosa. É igualmente simples e seguro compreender essa passagem como indicação de que a humanidade tornou-se de tal modo fisicamente depravada que esse fato, junto com as circunstâncias sob as quais nascem os homens e iniciam sua carreira moral, certamente (mas não necessariamente) resultará em depravação moral. Posso empregar exatamente a linguagem encontrada nesse texto e, com suficiente naturalidade, expressar com ela minhas próprias idéias a respeito da depravação moral, a saber, que ela resulta de uma constituição fisicamente depravada; e as circunstâncias da tentação sob a qual as crianças vêm a este mundo e começam e prosseguem em sua carreira moral; com certeza isso é o máximo que se pode dizer do texto.

De novo: "Eis que em iniqüidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe" (SI 51.5).

Quanto a isso observo que se veria, caso o texto fosse compreendido de maneira literal, que o salmista pretendia afirmar o estado pecaminoso de sua mãe no momento de sua concepção e durante a gestação. Mas interpretar essas passagens como afirmações da pecaminosidade constitutiva do homem é contradizer a própria definição divina de pecado, e a única definição que a razão humana ou o senso comum pode receber, a saber, que "o pecado é uma transgressão da lei". Essa é, sem dúvida, a única definição correta de pecado. Mas vimos que a lei não legisla sobre a substância, exigindo que os homens tenham certa natureza, mas apenas sobre atos voluntários. Se o salmista realmente pretendia afirmar que a substância de seu corpo era pecaminosa desde sua concepção, então ele não só se dispõe contra a própria definição divina de pecado, mas também afirma verdadeira insensatez. A substância de uma criança não nascida ser pecaminosa! É impossível. Mas que queria dizer o salmista? Respondo: Esse versículo encontra-se num salmo penitencial de Davi. Ele estava profundamente convicto do pecado e muito inflamado, tendo"bons motivos para isso, expressando-se, como todos fazemos em circunstâncias semelhantes, com palavras vigorosas. Seus olhos, como seria natural e comum em tais casos, haviam sido voltados para trás, para as veredas da vida até os dias de suas lembranças mais antigas. Ele se lembrou de pecados entre os mais antigos atos de sua vida rememorada. Ele irrompeu nas palavras desse texto para expressar, não o dogma antibíblico e ilógico de uma constituição pecaminosa, mas para afirmar em sua linguagem vigorosa e poética, que fora pecador desde o início de sua existência moral ou desde o primeiro momento de sua capacidade de ser pecador. Essa é a linguagem veemente da poesia.

Alguns supõem que na passagem em questão o salmista referia-se a sua origem humilde e desprezível, querendo reconhecê-la e afirmá-la, e dizer: sempre fui pecador e minha mãe que me concebeu era pecadora, e não passo de uma planta degenerada de uma vinha estranha, sem tentar afirmar algo com respeito à pecaminosidade absoluta de sua natureza.

De novo: "Alienam-se os ímpios desde a madre; andam errados desde que nasceram, proferindo mentiras" (SI 58.3). Sobre esse texto observo que tem sido citado em um momento para estabelecer a doutrina de uma natureza pecaminosa e, noutro, para provar que os infantes comentem pecados reais, desde o exato dia e hora do nascimento. Mas com certeza não é legítimo fazer tal uso do texto. Ele nada afirma a respeito de uma natureza pecaminosa, mas isso tem sido inferido daquilo que afirma: que os perversos são alienados desde o nascimento. Mas isso significa que são real e literalmente alienados desde o dia e a hora do nascimento e que de fato se desviam no próprio dia em que nascem, falando mentiras? Isso todos sabem ser contrário aos fatos. O texto não pode ser entendido de modo literal. Qual seu significado? Deve significar, como o último texto examinado, que os perversos são alienados e se afastam desde o início de sua agência moral. Se significasse mais que isso, contradiria outras passagens claras da Escritura. Afirma em palavras veementes, pictóricas e poéticas o fato de que a primeira conduta e caráter moral das crianças são pecaminosos. Isso é tudo o que em verdade se pode afirmar; e sem dúvida data o início de sua depravação moral num período muito remoto, expressando-o em linguagem muito forte, como se fosse literalmente desde o momento de nosso nascimento. Mas quando acrescenta que se afastam, falando mentiras, sabemos que isso não é nem pode ser interpretados literalmente, pois, como todos sabem, as crianças não falam, de modo algum, desde o nascimento. Se entendêssemos que o salmista afirma que as crianças desviam-se logo que caminham e falam mentiras assim que começam a falar, isso não provaria que a natureza delas é em si pecaminosa, mas bem pode ser coerente com a teoria de que a depravação física delas, junto com suas circunstâncias de tentação, as conduzem ao egoísmo desde o primeiro momento da existência.

De novo: "O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito" (Jo 3.6).

Quanto a isso observo que pode, entendido de modo literal, significar nada mais que isto: que o corpo nascido da carne é carne e que o nascido do espírito é espírito; ou seja, que esse nascimento do qual ele estava falando era o da alma, não do corpo. Mas pode ser interpretado como afirmação de que o que resulta da influência da carne é carne, no sentido de pecado; pois esse é o sentido comum do termo carne no Novo Testamento, e aquilo que resulta do Espírito é espírito ou espiritual, no sentido de santo. Esse entendo ser o verdadeiro sentido. O texto, quando assim compreendido, não sustenta de modo algum o dogma de uma natureza ou constituição pecaminosa, mas só isso: que a carne tende para o pecado, que os apetites e paixões são tentações ao pecado, de modo que quando a vontade obedece a eles, peca. Tudo o que nasce das propensões, no sentido de a vontade submeter-se ao seu controle, é pecaminoso. E, por outro lado, tudo o que é nascido do Espírito, ou seja, tudo o que resulta da agência do Espírito Santo, no sentido de a vontade submeter-se a Ele, é santo.

De novo: "Éramos por natureza filhos da ira, como os outros também" (Ef 2.3). Sobre esse texto observo que não pode, sendo coerente com a justiça natural, ser compreendido como afirmação de que somos expostos à ira de Deus por causa de nossa natureza. É um dogma monstruoso e blasfemo afirmar que um Deus santo está irado com alguma criatura por esta possuir uma natureza com que ganhou existência sem seu conhecimento ou anuência. A Bíblia apresenta Deus irado com os homens por seus atos perversos, não pela natureza deles.

É comum e adequado dizer do primeiro estado em que os homens se encontram universalmente como um estado natural. Assim falamos de pecadores antes da regeneração, como num estado da natureza, em oposição a um estado mudado, um estado regenerado e um estado de graça. Com isso não queremos necessariamente dizer que têm uma natureza pecaminosa em si, mas só que antes da regeneração são universal e moralmente depravados, que esse é o natural deles, em oposição com o estado regenerado deles. A depravação moral total é o estado que segue o primeiro nascimento deles e disso resulta, sendo nesse sentido natural, e só nesse sentido pode-se realmente dizer que são "por natureza filhos da ira". Contra o uso que se faz do texto e toda essa classe de textos, pode-se dispor todo o escopo de escrituras que representam o homem como um ser que deve ser acusado e julgado e punido só por seus atos. O assunto em questão no discurso desses textos é tal que exige que não os compreendamos como textos que inferem ou afirmam que o pecado seja parte essencial de nossa natureza.

 

Exame complementar dos argumentos mencionados em apoio à posição de que a natureza humana é em si pecaminosa.2

 

Os defensores da doutrina da pecaminosidade constitutiva ou depravação moral apresentam como argumento complementar:

Que o pecado é um efeito universal da natureza humana e, portanto, a natureza humana deve ser em si pecaminosa.

Resposta: Trata-se de um non sequitur. O pecado pode e deve ser um abuso da livre agência; e isso deve ser explicado, como veremos, por sua atribuição à universalidade da tentação, não implicando de modo algum uma constituição pecaminosa. Mas se o pecado implica necessariamente uma natureza pecaminosa, como Adão e Eva pecaram? Teriam eles uma natureza pecaminosa para explicar e causar o primeiro pecado deles? Como os anjos pecaram? Eles também possuíam uma natureza pecaminosa? Ou o pecado não implica uma natureza pecaminosa ou uma natureza pecaminosa em si, ou Adão e os anjos deviam ter natureza pecaminosa antes da queda.

De novo: Suponham que consideramos o pecado um evento ou efeito. Um efeito só implica uma causa adequada. A vontade livre e responsável é uma causa adequada na presença de tentações, sem a suposição de uma constituição pecaminosa, conforme foi demonstrado no caso de Adão e dos anjos. Quando encontramos uma causa adequada, não é filosófico procurar e assinalar outra.

De novo: Diz-se que nenhum motivo para pecar seria um motivo ou tentação, se não houvesse um gosto, uma satisfação ou apetite pecaminoso inerente na constituição para o qual a tentação ou motivo estaria voltado. Por exemplo, a presença de comida, dizem, não seria tentação a que se comesse, não houvesse um apetite constitutivo que se encerra na comida. Assim, a presença de algum objeto não induziria ao pecado, não houvesse um apetite constitutivo ou anseio pelo pecado. De modo que, de fato, o pecado em ação seria impossível, a menos que houvesse pecado na natureza. A isso replico:

Suponham que essa objeção seja aplicada a Adão e aos anjos. Não podemos explicar o fato de Eva comer o fruto proibido, sem supor que ela tinha um anseio pelo pecado? A Bíblia nos informa que seu anseio estava voltado para a fruta, para o conhecimento, não para o pecado. As palavras são: "E, vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela" (Gn 3.6). Aqui não existe algo como um anseio pelo pecado. Comer esse fruto era de fato pecaminoso, mas o pecado consistia em permitir-se gratificar, de um modo proibido, os apetites, não pelo pecado, mas por alimento e conhecimento. Mas os defensores dessa teoria dizem que deve haver uma adaptação na constituição, algum elemento interno que responda ao motivo ou tentação exterior; caso contrário o pecado seria impossível. Isso é verdade. Mas a pergunta é: Qual é esse elemento interno que responde ao motivo externo? É um anelo pelo pecado? Acabamos de ver o que ocorreu no caso de Adão e Eva. Foi simplesmente a correlação que existia entre o fruto e a constituição deles, sua presença atiçou os desejos por comida e conhecimento. Isso levou a uma satisfação proibida. Mas todos os homens pecam precisamente do mesmo modo. Eles consentem em gratificar, não um anseio por pecado, mas um anseio por outras coisas, e o consentimento em fazer da satisfação um fim é tudo o que constitui o pecado.

Os teólogos cujas idéias estamos escrutinando sustentam que os apetites, paixões, desejos e propensões constitutivos e inteiramente involuntários são em si pecaminosos. A isso replico que Adão e Eva os possuíam antes da queda. Cristo os possuía, ou não seria homem, nem seria, no sentido estrito, ser humano. Não, esses apetites, paixões e propensões não são pecaminosos, embora dêem ocasião para o pecado. São tentações a que a vontade busque uma indulgência ilegítima. Quando essa lascívia ou apetites são designadas "paixões do pecado" ou "concupiscências ou paixões pecaminosas", não é porque sejam pecaminosas em si, mas por darem ocasião ao pecado. Pergunta-se: Por que os apetites e propensões não devem ser considerados pecaminosos, uma vez que são as tentações predominantes para o pecado? Replico:

Eles são involuntários, e o caráter moral não pode ser atribuído a eles, pelo fato de serem tentações, assim como não se pode atribuí-lo ao fruto que foi tentação para Eva. Eles não têm o propósito de tentar. São constitutivos, involuntários e desprovidos de inteligência; e é impossível atribuir-lhes caráter moral. Um agente moral é responsável por suas emoções, desejos, etc, enquanto estiverem sob controle direto ou indireto de sua mente, não mais. Ele é sempre responsável pelo modo pelo qual os satisfaz. Se lhes dá vazão de acordo com a lei de Deus, age direito. Se faz da satisfação deles seu fim, peca.

De novo: A morte e sofrimento de infantes antes da uma transgressão real são mencionados como argumento para provar que os infantes possuem uma natureza pecaminosa. A isso replico:

Que esse argumento precisa pressupor que deve haver pecado sempre que existe sofrimento e morte. Mas essa pressuposição vai além, pois provaria que meros animais possuem uma natureza pecaminosa ou cometeram pecados reais. Um argumento que prova demais nada prova.

Os sofrimentos físicos só provam a depravação física, não a moral. Antes da agência moral, os infantes não são mais sujeitos ao governo moral que os brutos; portanto, seus sofrimentos e morte devem ser considerados como os dos brutos, a saber, devem ser atribuídos à interferência física nas leis da vida e da morte.

Outro argumento em favor de uma constituição pecaminosa é que, a menos que os infantes tenham uma natureza pecaminosa, não necessitam de santificação para lhes adequar para o Céu. Resposta:

Esse argumento pressupõe que, se não são pecaminosas, devem ser santas; enquanto não são nem pecaminosas nem santas até serem agentes morais, e assim se tornarem por obediência ou desobediência à lei moral. Se devem ir para o Céu, devem ser tornadas santas ou santificadas. Essa objeção pressupõe que a pecaminosidade prévia é uma condição da necessidade de ser santo. Isso é contrário aos fatos. Eram Adão e os anjos pecaminosos antes de serem santificados? Mas se pressupõe que a menos que os agentes morais sejam primeiro pecadores, não precisam do Espírito Santo para induzi-los a serem santos. Ou seja, a menos que sua natureza fosse pecaminosa, tornar-se-iam santos sem o Espírito Santo. Mas onde averiguamos isso? Suponham que não têm caráter moral e que a natureza deles não é nem santa nem pecaminosa. Tornar-se-iam santos sem serem iluminados pelo Espírito Santo? Quem afirmará que sim?

Que os infantes possuem natureza pecaminosa infere-se da instituição da circuncisão logo cedo, no oitavo dia após o nascimento. A circuncisão, alega-se com razão, foi designada para ensinar a necessidade de regeneração e, por inferência, a doutrina da depravação moral. Afirma-se que o fato de ser ordenada como obrigatória no oitavo dia após o nascimento significava que era requerida no primeiro momento em que podia ser executada com segurança.

Disso se infere que os infantes devem ser considerados moralmente depravados desde o nascimento.

Em resposta a isso eu diria que a circuncisão dos infantes tinha sem dúvida o propósito de ensinar a necessidade de serem salvos, pelo Espírito Santo, do domínio da carne; que a influência da carne deve ser restringida e a carne circuncidada, ou a alma estará perdida. Essa verdade precisava ser incutida nos pais, desde o nascimento de seus filhos. Esse rito muito significativo, sangrento e doloroso foi bem planejado para incutir essa verdade nos pais e levá-los a observar desde o nascimento o desenvolvimento e satisfação de suas propensões e a orar pela santificação deles. O fato de ser requerido em dia tão remoto tinha, sem dúvida, o propósito de indicar que estão desde o início sob o domínio da carne, sem, porém, permitir qualquer inferência em favor da idéia de que a carne deles seja em si pecaminosa ou que a ação de sua vontade naquele período tão remoto seja pecaminosa. Se a razão não se desenvolvesse, a sujeição da vontade ao apetite não seria pecaminosa. Mas seja essa sujeição da vontade à satisfação do apetite pecaminosa ou não, a criança deve ser livrada dela, ou jamais estará apta para o Céu, assim como um mero bruto não pode estar apto para o Céu. O fato de a circuncisão ser requerida no oitavo dia e não antes parece indicar, não que sejam pecadores de maneira absoluta desde o nascimento, mas que se tornam pecadores muito cedo, logo no início da agência moral.

De novo: O rito deve ser realizado em algum momento. A menos que se indicasse um dia, seria muito suscetível de ser retardado e, por fim, não ser executado. É provável que Deus tivesse ordenado que fosse executado no primeiro momento em que podia ser realizado com segurança, não só pelo motivo já declarado, mas para impedir que fosse negligenciado por muito tempo e, talvez, por completo; e, talvez também, porque seria menos dolorido e perigoso nessa idade precoce, quando os infantes dormem a maior parte do tempo. Quanto mais tempo negligenciada, maior seria a tentação de negligenciá-la por completo. Um rito tão dolorido precisava ser recomendado por um estatuto positivo em algum tempo específico; e isso era desejável pelo fato de dever ser executado no primeiro momento em que pudesse ser executado com segurança. Esse argumento, pois, em favor de uma depravação moral constitutiva inata resulta na realidade em nada.

De novo: Alega-se que a menos que os infantes tivessem uma natureza pecaminosa, não poderiam ser salvos pela graça de Cristo, caso morressem na infância.

A isso respondo que, nesse caso, não seriam nem poderiam, aliás, ser enviados para o lugar de punição de pecadores; porque isso seria confundir inocentes com culpados, algo moralmente impossível para Deus.

Mas que graça haveria em salvá-los de uma constituição pecaminosa e não fosse exercida para salvá-los de circunstâncias que com certeza resultariam em se tornarem pecadores, caso não arrebatadas deles? Em nenhum dos casos eles precisam de perdão de pecados. A graça é um favor imerecido -- algo gratuito. Se a criança possui uma natureza pecaminosa, é seu infortúnio, não seu crime. Salvá-la de sua natureza é salvá-la das circunstâncias que com certeza resultarão numa transgressão real, a menos que seja resgatada pela morte e pelo Espírito Santo. Assim, se sua natureza não é pecaminosa, ainda é certo que sua natureza e circunstâncias são tais, que com certeza pecará, a menos que seja resgatada pela morte e pelo Espírito Santo antes que seja capaz de pecar. Certamente deve ser um favor infinito ser resgatada de tais circunstâncias e, em especial, ter a vida eterna conferida como mero ato gratuito. Isso decerto é graça. E uma vez que os infantes pertencem a uma raça de pecadores os quais são todos entregues nas mãos de Cristo, sem dúvida eles atribuirão sua salvação à graça infinita de Cristo.

De novo: Não é a graça que nos salva de pecar? Que seria, se não a graça, o que salva os infantes de pecar, afastando-os das circunstâncias de tentação? De que maneira a graça salva os adultos de pecar, se não o ato de mantê-los afastados da tentação ou de lhes dar graça para vencê-la? E não haveria graça em resgatar infantes das circunstâncias que certamente os levaria a pecar, caso fossem deixados nelas?

Tudo o que se pode dizer com certeza em ambos os casos é que se os infantes são salvos, o que suponho acontecer, eles são, pela benevolência de Deus, resgatados das circunstâncias que resultariam em morte certa e eterna, sendo pela graça feitos herdeiros da vida eterna. Mas, afinal, é inútil especular acerca do caráter e destino daqueles que não são absolutamente agentes morais. A benevolência de Deus cuidará deles. Não faz sentido insistir na depravação moral deles antes de serem agentes morais e é vão afirmar que devem ser moralmente depravados, como condição para serem salvos pela graça.

Negamos que a constituição humana seja moralmente depravada, porque é impossível que o pecado seja uma qualidade da substância da alma ou do corpo. Ela é e deve ser uma qualidade de escolha ou intenção, não de substância. Fazer do pecado um atributo ou qualidade da substância é contrário à definição divina de pecado. "Pecado", diz o apóstolo, "éanomia"', uma "transgressão ou falta de conformidade à lei moral". Ou seja, consiste numa recusa em amar a Deus e ao próximo, ou, em outras palavras, em amar a nós mesmos de maneira suprema.

Apresentar a constituição como algo pecaminoso é apresentar Deus, o autor da constituição, como o autor do pecado. Dizer que Deus não é o formador direto da constituição, mas que o pecado é transmitido por geração natural desde Adão, que se fez pecaminoso, é só colocar a objeção um passo atrás, mas não evitá-la; pois Deus estabeleceu as leis físicas que conduzem necessariamente a esse resultado.

Mas como Adão obteve uma natureza pecaminosa? Seu primeiro pecado mudou sua natureza? ou Deus o mudou como castigo pelo pecado? Qual a base para a afirmação de que a natureza de Adão tornou-se em si pecaminosa por intermédio da queda? Trata-se de uma pressuposição infundada, para não dizer ridícula, e um absurdo. O pecado, um atributo da natureza! Uma substância pecaminosa! O pecado, uma substância! Tratar-se-ia de uma substância sólida, fluida, material ou espiritual?

Recebi de um irmão a seguinte observação sobre o assunto: "Os credos ortodoxos são em alguns casos cuidadosos em dizer que o pecado original não consiste na substância da alma nem do corpo. Assim, Brestschneider, reconhecido entre os racionalistas alemães, diz: 'Os livros simbólicos sustentam com muita correção que o pecado original não é, em sentido algum, substância do homem, seu corpo ou alma, como ensinava Flácio, mas que foi infundido na natureza humana por Satanás e com ela misturada, como se mistura veneno ao vinho'.

"Eles se guardam de modo bem expresso contra a idéia de que com a frase 'natureza humana' querem dizer sua substância, mas algo aposto na substância. Assim, explicam o pecado original, não como um atributo essencial do homem, ou seja, uma parte necessária e essencial de seu ser, mas como um acidente, ou seja, algo que não subsiste em si, mas como algo acidental introduzido na natureza humana. Ele cita a Formula Concordantía e que diz: 'Natureza não denota a substância propriamente dita do homem, mas algo que herda aposto à natureza ou substância'. Acidente é definido como 'aquilo que não subsiste por si, mas está em alguma substância e pode ser dela distinguido'."

Aqui, parece, está o pecado em si, mas não uma substância ou subsistência -- não uma parte ou atributo da alma ou corpo. Que pode ser isso? Consistiria em ação errada? Não, não em ação, mas num acidente que se herda aposto à natureza da substância. Mas que pode ser isso? Nem substância, nem ainda ação. Mas se é algo, deve ser ou substância ou ação. Se for um estado da substância, que seria isso, se não substância num estado particular? Pensariam esses autores livrar, com essa sutileza e refinamento, sua doutrina de depravação moral constitutiva de seu absurdo intrínseco?

Faço objeção à doutrina de pecaminosidade constitutiva porque torna todo pecado original e real mera calamidade, não um crime. Para aqueles que sustentam que o pecado é parte essencial e inseparável de nossa natureza, chama-lo de crime é falar insensatez. Quê! Uma natureza pecaminosa um crime de alguém que a tem vinculada a si sem seu conhecimento nem consentimento? Se a natureza é pecaminosa, em tal sentido que a ação deva ser necessariamente pecaminosa, conforme a doutrina da Confissão de Fé, então o pecado em ação deve ser calamidade e não pode ser crime. É o efeito necessário de uma natureza pecaminosa. Isso não pode ser um crime, já que a vontade não tem qualquer relação com ele.

Evidentemente isso deve tornar o arrependimento, com ou sem a graça de Deus, impossível, a menos que a graça desconsidere nossa razão. Se o arrependimento implica auto-condenação, jamais podemos nos arrepender no exercício de nossa razão. Constituídos como somos, é impossível que devamos nos condenar por uma natureza pecaminosa ou por atos inevitáveis. A doutrina de um pecado original ou de uma constituição pecaminosa e de atos necessariamente pecaminosos representa todo o governo moral de Deus, o plano da salvação por Cristo e, com efeito, toda a doutrina do Evangelho como mera farsa. Dentro dessa suposição, a lei é tirania, e o Evangelho um insulto para os infortunados.

É difícil, aliás, impossível para os que realmente crêem nessa doutrina instar arrependimento e submissão imediata no pecador, pelo sentimento de que é infinitamente culpado, a menos que ceda de modo instantâneo. E uma contradição afirmar que um homem pode crer de coração na doutrina em questão e ainda acusar com a mente e o coração os pecadores por não fazerem o que lhes é naturalmente impossível. Deve haver na mente deles a convicção secreta de que os pecadores não podem na realidade ser acusados por serem pecadores. Pois de fato, se essa doutrina é verdadeira, ele não deve ser acusado por ser pecador, assim como não pode ser acusado por ser homem. Disso precisa saber o defensor dessa doutrina. É vão ele fingir que com efeito culpa os pecadores por sua natureza ou por sua conduta inevitável. Ele não pode fazê-lo, assim como não pode, sendo honesto, negar as necessárias afirmações de sua própria razão. Assim, os defensores dessa teoria devem simplesmente sustentá-la como uma teoria, sem crer nela, caso contrário devem, em sua convicção secreta, desculpar o pecador.

Essa doutrina leva natural e necessariamente seus defensores a, pelo menos em secreto, atribuir a expiação de Cristo mais à justiça que à graça -- considerá-la mais um expediente para livrar os infortunados do que tornar possível o perdão de pecadores indesculpáveis. Os defensores da teoria só podem considerar bem difícil o caso do pecado e Deus sob a obrigação de prover um meio para que o homem escape de uma natureza pecaminosa, imposta a ele sem sua anuência, e de transgressões reais que resultam de sua natureza por uma lei de necessidade. Se tudo isso for verdade, o caso do pecador é infinitamente difícil, e Deus pareceria o mais irracional e cruel dos seres, se não providenciasse uma via de escape para ele. Essas convicções alojam-se e devem-se alojar na mente daquele que realmente crê no dogma de uma natureza pecaminosa. Isso, em substância, é às vezes afirmado pelos defensores da doutrina do pecado original.

O fato de Cristo ter morrido em lugar e em favor dos pecadores prova que Deus não os considerava desafortunados, mas criminosos totalmente indesculpáveis. Decerto Cristo não precisaria ter morrido para expiar os infortúnios dos homens. Sua morte foi para expiar-lhes a culpa, não seus infortúnios. Mas se são indesculpáveis pelo pecado, devem ser desprovidos de uma natureza pecaminosa que torne o pecado inevitável. Se os homens são indesculpáveis pelo pecado, como pressupõem e ensinam toda a Lei e o Evangelho, não é possível que sua natureza seja pecaminosa, pois uma natureza pecaminosa seria a melhor das desculpas para o pecado.

Essa doutrina é uma pedra de tropeço tanto para a Igreja como para o mundo, infinitamente desonroso para Deus e igual abominação para o intelecto de Deus e do homem, devendo ser banida de todo púlpito e de toda fórmula de doutrina e do mundo. Trata-se de um resquício de filosofia paga, impingida entre as doutrinas do cristianismo por Agostinho, como sabem todos que se dão ao trabalho de examinar por si. Essa concepção de depravação moral a que me oponho tem sido há muito baluarte do universalismo. Partindo dele, os universalistas atacam com força irresistível contra a idéia de que os pecadores devam ser enviados para um inferno eterno. Assumindo a doutrina há muito defendida da pecaminosidade original ou constitutiva, passam a mostrar que seria infinitamente irracional e injusto Deus enviá-los para o Inferno. Quê! Criá-los com uma natureza pecaminosa da qual procedem, por uma lei de necessidade, as reais transgressões, e depois enviá-los para um inferno eterno por terem essa natureza e por transgressões inevitáveis! Impossível! Dizem eles; e o intelecto humano responde: Amém.

Também do dogma de uma natureza ou constituição pecaminosa, flui de maneira natural e irresistível a doutrina da incapacidade de arrependimento e a necessidade de uma regeneração física. Essa também tem sido uma triste pedra de tropeço para os universalistas, como sabem todos os que estejam bem familiarizados com a história do universalismo. Eles inferem a salvação de todos os homens a partir do fato da benevolência e onipotência física de Deus! Deus é onipotente e é amor. Os homens são constitutivamente depravados e incapazes de arrependimento. Deus não os envia nem pode enviá-los para o Inferno. Eles não o merecem. O pecado é uma calamidade, e Deus pode salvá-los e tem o dever de fazê-lo. Essa é a substância do argumento deles. E quando se assume a verdade de suas premissas, não há como fugir da conclusão a que chegam. Mas todo o argumento é construído com "elementos como os que formam os sonhos". Arranque-se o dogma errôneo de uma natureza pecaminosa, e todo o edifício do universalismo vem ao chão num momento. Passamos agora a considerar:

2. O método adequado de explicar a depravação moral.

Vimos mais de uma vez que a Bíblia nos dá a história da introdução do pecado em nosso mundo, e que da narrativa fica claro que o primeiro pecado consistiu em egoísmo ou em permitir a satisfação das propensões constitutivas de um modo proibido. Em outras palavras, consistiu numa submissão da vontade aos impulsos da sensibilidade, em lugar de permanecer na lei de Deus conforme revelada na inteligência. Assim, a Bíblia atribui o primeiro pecado de nossa raça à influência da tentação.

A Bíblia dá a entender uma única vez, incidentalmente, que o primeiro pecado de Adão é de algum modo a ocasião, não a necessária causa física, de todos os pecados dos homens (Rm 5.12-19). Ela não afirma nem insinua algo em relação ao modo pelo qual o pecado de Adão ocasionou esse resultado. Ela reconhece o fato apenas de maneira incidental e depois o deixa, como se o quo modo fosse por demais óbvio para necessitar de explanação. Em outras partes da Bíblia somos informados de como devemos explicar a existência do pecado entre os homens. Tiago afirma que o homem é tentado quando é desviado pelas próprias concupiscências (epithumia -- "desejos") e enredado (Tg 1.14). Ou seja, suas concupiscências ou impulsos da sensibilidade são seus tentadores. Quando ele e sua vontade são sobrepujados por tais, ele peca. Paulo e outros autores inspirados representam o pecado como algo que consiste numa mente carnal, na mente da carne ou em dar lugar à carne. E claro que pelo termo carne querem dizer o que entendemos por sensibilidade, naquilo que se distingue do intelecto, e que representam o pecado como algo que consiste em obedecer, dar ouvidos aos impulsos da sensibilidade. Eles apresentam o mundo, a carne e Satanás como as três grandes fontes de tentação. E claro que o mundo e Satanás tentam apelando para a carne ou sensibilidade. Assim, os apóstolos têm muito a dizer da necessidade de destruir a carne, os membros, de despir o velho homem com seus feitos, etc. Ora, vale notar que todo esse esforço por parte da Inspiração para sugerir a fonte de onde procede nosso pecado e nos informar o método adequado de explicá-lo e também de evitá-lo tem provavelmente dado ocasião para levar certos filósofos e teólogos que não examinaram com cuidado todo o assunto a ter dele uma idéia diretamente oposta à verdade pretendida pelos escritores inspirados. Uma vez que muito se diz da influência da carne sobre a mente, eles inferiram que a natureza e constituição física do homem é em si pecaminosa. A lei de seus membros, que guerreava contra a lei de sua mente, da qual fala Paulo, é manifestamente o impulso da sensibilidade em oposição à lei da razão. Essa lei, ou seja, o impulso de sua sensibilidade, leva-o ao cativeiro, ou seja, influencia sua vontade, apesar de todas as suas convicções em contrário.

A depravação moral consiste, lembrem-se, em comprometimento da vontade à gratificação ou satisfação de si mesmo -- a vontade servir ou submeter-se ao governo dos impulsos e desejos da sensibilidade, em lugar de submeter-se à lei de Deus revelada na razão.

Essa definição dada a isso mostra como deve ser explicado, a saber: a sensibilidade age como forte impulso sobre a vontade, desde o momento do nascimento, e consegue o consentimento e a atividade da vontade que procura sua gratificação, antes de a razão desenvolver-se totalmente. A vontade é assim dedicada à gratificação do sentimento e do apetite quando se desenvolve a primeira idéia de obrigação moral. Esse estado comprometido da vontade não é depravação moral e não possui caráter moral, até que a idéia de obrigação moral seja desenvolvida. No momento que essa idéia é desenvolvida, esse compromisso da vontade com a indulgência própria deve ser abandonado, ou se torna egoísmo ou depravação moral. Mas, uma vez que a vontade já se encontra num estado de compromisso e já formou em alguma medida o hábito de buscar a gratificação dos sentimentos, e uma vez que, de início, a idéia de obrigação moral só se desenvolve de modo frágil, a menos que o Espírito Santo interfira para lançar luz sobre a alma, a vontade, conforme se espera, mantém-se apegada à gratificação própria. Só aqui começa e deve começar o caráter moral. Ninguém pode concebê-lo começando antes.

Essa escolha egoísta é o coração perverso -- a propensão ao pecado -- que causa o que é em geral denominado transgressão real. Essa escolha pecaminosa é devidamente chamada pecado residente. Trata-se da preferência latente, permanente, controladora da mente e a causa de toda a vida exterior e ativa. Não é a escolha do pecado em si, concebido distintamente ou escolhido como pecado, mas a escolha da gratificação própria, cuja escolha é pecado.

De novo: Deve-se lembrar que a depravação física de nossa raça tem muita relação com nossa depravação moral. Um sistema físico enfermo torna mais clamorosos e despóticos os apetites, paixões, humores e propensões em suas demandas, e, é claro, instando constantemente ao egoísmo, os confirma e fortalece. Deve-se lembrar de modo distinto que a depravação física não possui em si caráter moral. Mas ainda assim é fonte de forte tentação ao egoísmo. A sensibilidade humana é, de modo manifesto, profundamente depravada no aspecto físico; e uma vez que o pecado ou a depravação moral consiste em submeter a vontade à gratificação da sensibilidade, sua depravação física fortalecerá em muito a depravação moral. A depravação moral, portanto, é causada universalmente pela tentação. Isto é, a alma é tentada à indulgência própria e cede à tentação, e esse ceder, não a tentação, é o pecado ou a depravação moral. Esse é o modo manifesto pelo qual Adão e Eva tornaram-se moralmente depravados. Eles foram tentados, mesmo que por um apetite não depravado, a uma indulgência proibida, sendo vencidos. O pecado não estava no desejo constitutivo por comida ou por conhecimento, nem no estado exaltado desses apetites ou desejos, mas na submissão da vontade a uma satisfação proibida. Exatamente como todos os pecadores tornam-se pecadores, ou seja, tornam-se moralmente depravados ao ceder à tentação de gratificar a si mesmos de algum modo. Aliás, é impossível que se tornem moralmente depravados de algum outro modo. Negar isso seria desconsiderar a própria natureza da depravação moral.

Para resumir a verdade a respeito do assunto em poucas palavras, eu diria:

1. A depravação moral em nossos primeiros pais foi induzida pela tentação dirigida contra as susceptibilidades não pervertidas da natureza deles. Quando essas susceptibilidades ficaram fortemente exaltadas, elas venceram a vontade; ou seja, o casal humano foi persuadido e caiu diante da tentação. Isso se tem afirmado repetidas vezes, mas precisa ser repetido num resumo.

2. Toda depravação moral começa substancialmente do mesmo modo. Prova:

(1) Os impulsos da sensibilidade são desenvolvidos de maneira gradual, a começar do nascimento, e dependem do desenvolvimento e crescimento físico.

(2) Os primeiros atos da vontade obedecem a eles.

(3) A gratificação própria é a regra de ação prévia ao desenvolvimento da razão.

(4) Não se oferece qualquer resistência à vontade em sua satisfação do apetite até que um hábito de indulgência própria seja formado.

(5) Quando a razão afirma a obrigação moral, encontra a mente num estado de submissão habitual e constante aos impulsos da sensibilidade.

(6) As exigências da sensibilidade tornam-se mais despóticas quanto maior o tempo que são toleradas.

(7) Nessas circunstâncias, a menos que o Espírito Santo interfira, a idéia de obrigação moral só se desenvolverá de maneira débil.

(8) A vontade, é claro, não aceita cumprir a ordem da razão e se apega à indulgência própria.

(9) Essa é a solução de um problema fundamental. É decidir em favor do apetite, contra os clamores da consciência e de Deus.

(10) A luz, uma vez rejeitada, pode ser depois recusada com maior facilidade, até que seja excluída quase que por completo.

(11) O egoísmo confirma, fortalece e perpetua a si mesmo por um processo natural. Ele cresce com o crescimento do pecador, e se fortalece com sua força; e o fará para sempre, a menos que seja vencido pelo Espírito Santo por intermédio da verdade.

Observações

1. Adão, sendo o cabeça natural da raça, naturalmente afetaria em grande medida, pela mais sábia constituição das coisas, para o bem ou para o mal, toda a sua posteridade.

2. Seu pecado expôs, de muitas maneiras, sua posteridade a uma tentação agravada. Não só a constituição física de todos os homens, mas todas as influências sob as quais primeiro formam seu caráter moral, são amplamente diferentes daquilo que seria, caso o pecado jamais tivesse sido introduzido.

3. Quando o egoísmo é compreendido como o todo da depravação moral, seu quo modo, ou o como passou a existir, torna-se manifesto. Concepções claras disso revelarão de maneira instantânea a ocasião e o modo.

4. A única dificuldade em explicá-lo é a falsa pressuposição de que deve haver e há algo por trás dos atos livres da vontade, mantendo com essas ações uma relação de causa, algo pecaminoso em si.

5. Se Adão e os anjos, sendo santos, podiam cair sob tentações dirigidas à sua sensibilidade não depravada, como é absurdo concluir que o pecado naqueles nascidos com uma constituição física depravada não pode ser explicado sem que se o atribua ao pecado original ou a uma natureza que seja em si pecaminosa.

6. Sem iluminação divina, o caráter moral será formado, é claro, sob a influência da carne. Ou seja, as propensões inferiores influenciarão obviamente a vontade, a menos que a razão seja desenvolvida pelo Espírito Santo.

7. O dogma da depravação moral constitutiva é parte integrante da doutrina de uma vontade necessitada. Trata-se de um ramo de uma filosofia crassamente falsa e paga. É infinitamente absurdo, perigoso e injusto, portanto, incorporá-la numa doutrina cristã padrão, dar-lhe lugar de artigo indispensável de fé e denunciar todos os que não engolem seus absurdos como hereges!

8. Somos incapazes de dizer com precisão em que idade os infantes tornam-se agentes morais e, é claro, quando se tornam pecadores. Sem dúvida há muita diferença de uma criança para outra nesse sentido. A razão desenvolve-se numa mais cedo que em outra, de acordo com a constituição e as circunstâncias.

Uma consideração completa do assunto levará, sem dúvida, à convicção de que as crianças tornam-se agentes morais muito mais cedo do que em geral se supõe. As condições da agência moral são, como se disse repetidas vezes em aulas anteriores, a posse das faculdades da agência moral, juntamente com o desenvolvimento das idéias do bem ou do valor, da obrigação moral ou do dever -- do certo e do errado -- de louvor e culpa. Empenhei-me por mostrar em aulas anteriores que a satisfação mental, bem-aventurança ou felicidade é o bem último. A satisfação que brota da gratificação dos apetites é uma das primeiras experiências dos seres humanos. Isso decerto sugere ou desenvolve num período muito precoce a idéia do bem ou do valor. A idéia é, sem dúvida, desenvolvida muito antes que se compreenda a palavra que a expressa. A criança sabe que a felicidade é boa e busca-a em forma de gratificação própria, muito antes que os termos que designam esse estado mental sejam todos compreendidos. Ela sabe que vale buscar o próprio prazer, e decerto possui bem cedo a idéia de que vale buscar o deleite dos outros e afirma para si mesma, não em palavras, mas em idéia, que deve agradar aos pais e aos que estão ao seu redor. Ela sabe, de fato, mesmo que a linguagem ainda lhe seja desconhecida, que ama ser gratificada e feliz, que ama e busca o prazer para si, e sem dúvida possui a idéia de que não deve desagradar ou afligir as pessoas ao seu redor, mas que deve empenhar-se por agradá-las e gratificá-las. É provável que isso esteja entre as primeiras idéias, se não for exatamente primeira idéia da razão pura que se desenvolve, a idéia do bem, do valor, do desejável; e a próxima deve ser do dever ou da obrigação moral ou do certo e errado, etc. Repito: essas idéias são e devem ser desenvolvidas antes que os sinais ou palavras que as expressam sejam todos compreendidos, e as palavras jamais seriam compreendidas, a menos que a idéia se desenvolvesse antes. Sempre percebemos no mais remoto período em que as crianças conseguem compreender palavras, que elas possuem a idéia de obrigação, de certo e errado. Assim que compreendem essas palavras, reconhecem-nas como expressões de idéias já residentes em sua mente e com idéias mais remotas do que conseguem lembrar. Alguns, aliás a maioria, parecem ter a idéia de que as crianças afirmam estar sob obrigação moral antes de terem idéia do bem; que afirmam sua obrigação de obedecer aos pais antes de conhecer ou ter a idéia do bem ou do valor. Mas isso é e deve ser um engano. Elas podem afirmar e afirmam a obrigação de obedecer aos pais antes de conseguirem expressar em palavras e antes de compreenderem uma declaração sobre o fundamento de sua obrigação. A idéia, porém, elas a possuem e devem possuir, ou não poderiam afirmar a obrigação.

9. Por que o pecado é tão natural na humanidade? Não porque a natureza dela é em si pecaminosa, mas porque os apetites e paixões tendem com muito vigor à indulgência própria. Esses são tentações ao pecado, mas o pecado em si consiste não nesses apetites e propensões, mas na comissão voluntária da vontade à satisfação deles. Essa comissão da vontade é egoísmo, e quando a vontade rende-se uma vez ao pecado, é muito natural pecar. A vontade, uma vez entregue à indulgência própria como seu fim, os atos egoístas tornam-se num sentido espontâneos.

10. A constituição de um ser moral como um todo, quando todas as faculdades estão desenvolvidas, não tende ao pecado, mas com vigor em direção oposta; conforme é manifesto no fato de que quando a razão é totalmente desenvolvida pelo Espírito Santo, a sensibilidade não é páreo para ela, e o coração volta-se para Deus. A dificuldade é que a sensibilidade toma o início da razão e empenha a atenção para engendrar meios de gratificação própria, com isso retardando e, em grande medida, impedindo o desenvolvimento das idéias da razão designadas para controlar a vontade. É para retificar esse mórbido desenvolvimento que o Espírito Santo é dado; Ele de tal maneira atrai a atenção para a verdade, que garante o desenvolvimento da razão. Ao fazê-lo, Ele leva a vontade a se submeter à influência da verdade. Nossos sentidos revelam a nós os objetos correlatos a nossa natureza e propensões animais. O Espírito Santo revela Deus e o mundo espiritual, e toda aquela classe de objetos correlatos a nossa natureza superior, dando à razão o controle da vontade. Isso é regeneração e santificação, conforme veremos no devido tempo.

 

1 Na edição de 1878, aqui começa uma nova aula intitulada: Depravação Moral.

2 Na edição de 1878, aqui começa uma nova aula intitulada: Depravação Moral.  

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