A VERDADE DO EVANGELHO
TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Charles Finney

  

AULA 9

OS ATRIBUTOS DO AMOR

 

Demonstrou-se que o resumo e o espírito de toda a lei é devidamente expresso em uma palavra: amor. Também se demonstrou que esse amor é benevolência ou boa vontade; que consiste em escolher o máximo bem de Deus e do ser universal, pelo próprio valor intrínseco, num espírito de inteira consagração a isso como um fim último da existência. É, portanto, indispensável para um correto entendimento desse assunto que investiguemos as características ou atributos desse amor. Devemos manter firmes na mente certas verdades de filosofia mental. Irei, portanto,

 

Chamar a atenção para certos fatos na filosofia mental conforme revelados na consciência.

 

1. Os agentes morais possuem intelecto ou a faculdade de conhecer.

2. Também possuem sensibilidade e sensitividade ou, em outras palavras, a faculdade ou susceptibilidade de sentir.

3. Também possuem vontade ou a capacidade de escolher ou rejeitar em todos os casos de obrigação moral.

Essas faculdades primárias estão de tal modo ligadas umas às outras, que o intelecto ou a sensibilidade pode controlar a vontade, ou a vontade pode, em certo sentido, controlá-los. Ou seja, a mente é livre para escolher de acordo com as exigências do intelecto, a faculdade legisladora, ou com os desejos e impulsos da sensibilidade, ou para controlar e dirigir ambos. A vontade pode controlar diretamente a atenção do intelecto e, por conseguinte, suas percepções, pensamentos, etc. Ela pode controlar indiretamente os estados da sensibilidade, ou a faculdade de sentir, controlando as percepções e pensamentos do intelecto. Também sabemos pela consciência, conforme foi demonstrado numa aula passada, que os músculos voluntários do corpo são diretamente controlados pela vontade, e que a lei que obriga a atenção, os sentimentos e as ações do corpo obedecerem às decisões da vontade é a lei física ou a lei da necessidade. A atenção do intelecto e os atos externos são controlados de modo direto, e os sentimentos, de modo indireto pelas decisões da vontade. A vontade pode ou comandar ou obedecer. Ela pode deixar-se escravizar pelo impulsos da sensibilidade ou pode afirmar sua soberania pela lei da necessidade ou força; de modo que a vontade pode sempre resistir seja às demandas da inteligência, seja aos impulsos da sensibilidade. Mas embora não possam reger a vontade por intermédio de alguma lei de força, a vontade tem a ajuda da lei de necessidade ou força por meio da qual controlá-los.

De novo, temos consciência de afirmar a nós mesmos a nossa obrigação de obedecer à lei do intelecto e não aos impulsos da sensibilidade; que para agir de maneira virtuosa, precisamos agir com a razão, ou com o intelecto, e não nos entregar aos impulsos cegos de nossos sentimentos.

Ora, uma vez que o amor exigido pela lei moral consiste em escolha, desejo, intenção, conforme demonstrou-se repetidas vezes; e uma vez que a escolha, desejo, intenção controlam diretamente os estados do intelecto e as ações externas por uma lei de necessidade, segue-se que certos estados do intelecto e da sensibilidade e também certos atos externos devem estar implicados na existência do amor requerido pela lei de Deus. Digo implicados, não como algo que faça parte dele, mas como resultados necessários dele. Os pensamentos, opiniões, julgamentos, sentimentos e atos externos devem ser moldados e modificados pelo estado do coração ou vontade.

Aqui é importante observar que, em linguagem comum, a mesma palavra é com freqüência usada para expressar ou uma ação, ou atitude, da vontade ou um estado da sensibilidade, ou ambos. Isso diz respeito a todos os termos que representam o que se chama graças cristãs ou virtudes ou aquelas várias modalidades de virtude de que os cristãos têm consciência e que aparecem na vida e no temperamento deles. Dessa verdade seremos constantemente relembrados enquanto prosseguirmos em nossas investigações, pois encontraremos ilustrações dela a cada passo de nosso progresso.

Mas antes de passar a apontar os atributos da benevolência, é importante destacar que todos os atributos morais de Deus e de todos os seres santos são apenas atributos da benevolência. Benevolência é um termo que expressa todos eles de maneira abrangente. Esse termo expressa de modo abrangente todo o caráter moral de Deus. Esse amor, conforme vimos várias vezes, é benevolência. Benevolência é desejar o bem ou escolher o máximo bem de Deus e do universo como um fim. Mas dessa declaração abrangente, por mais precisa que seja, podemos receber várias concepções inadequadas do que realmente pertence à benevolência ou nela está implicado. Dizer que o amor é o cumprimento de toda a lei; que a benevolência é toda a religião verdadeira; que todo o dever do homem para com Deus e seu próximo é expresso em uma palavra: amor -- essas declarações, ainda que verdadeiras, são por demais abrangentes, carecendo para todas as mentes de muita amplificação e explanação. Muitas coisas estão implícitas no amor ou benevolência. Com isso se entende que a benevolência deve ser vista por vários aspectos e em várias relações, e sua natureza, considerada nas várias relações em que é convocada a atuar. A benevolência é uma intenção última ou a escolha de um fim último. Mas se considerarmos que isso é tudo o que está implicado na benevolência, cometeremos um erro abjeto. A menos que indaguemos a natureza do fim escolhido pela benevolência e os meios pelos quais procuramos atingir esse fim, pouco compreenderemos do significado da palavra benevolência. A benevolência possui muitos atributos ou características. Todos eles precisam estar em harmonia na seleção de seu fim e em seus esforços para atingi-lo. Com isso entende-se que a benevolência não é uma escolha cega, mas inteligentíssima. É a escolha do melhor fim possível em obediência à exigência da razão e de Deus, implicando a escolha dos melhores meios possíveis para garantir esse fim. Tanto o fim como os meios são escolhidos em obediência à lei de Deus e da razão. Um atributo é uma qualidade permanente de algo. Os atributos da benevolência são aquelas qualidades permanentes que pertencem à própria natureza dela. A benevolência não é uma escolha cega, mas inteligente. É a escolha do máximo bem-estar dos agentes morais. Ela busca esse fim por meios adequados à natureza dos agentes morais. Assim, a sabedoria, justiça, misericórdia, verdade, santidade e muitos outros atributos, conforme veremos, são elementos essenciais ou atributos da benevolência. Para compreendermos o que seja a verdadeira benevolência, precisamos buscar seus atributos. Nem tudo que é chamado amor possui um mínimo da natureza da benevolência. Assim também, nem tudo o que é chamado benevolência tem algum direito a esse título. Há vários tipos de amor. A afeição natural é chamada amor. Nossa preferência por certos tipos de dieta é chamada amor. Assim, dizemos que amamos frutas, verduras, carne, leite, etc. A benevolência é também chamada amor, sendo aquele tipo de amor, sem dúvida alguma, requerido pela lei de Deus. Mas há mais que um estado mental chamado benevolência. Há uma benevolência natural ou frenológica, que com freqüência é misturada ou confundida com a benevolência que se constitui virtude. Isso, a que se chama benevolência, é na verdade apenas uma forma impositiva de egoísmo; entretanto é chamada benevolência. Muitas de suas manifestações são como as da verdadeira benevolência. Portanto, ao se dar instrução religiosa, é preciso tomar o cuidado de fazer distinção precisa entre elas. A benevolência, deve-se lembrar, é a obediência da vontade à lei da razão e de Deus. E desejar o bem como um fim, por si, e não para gratificação própria. O egoísmo consiste na obediência da vontade aos impulsos da sensibilidade. É um espírito de gratificação própria. A vontade busca a gratificação dos desejos e inclinações pelo prazer da gratificação. A gratificação própria é buscada como um fim e como o fim supremo. Ela é preferida às reivindicações de Deus e ao bem do ser. A benevolência frenológica ou natural é apenas obediência ao impulso da sensibilidade -- uma entrega ao sentimento de compaixão. E só um esforço de gratificar um desejo. E, portanto, realmente egoísmo e também uma tentativa de gratificar algum desejo natural, qualquer que seja.

E impossível ter uma idéia justa do que constitui obediência à lei divina e o que está implícito nisso, sem considerar atentamente os vários atributos da benevolência propriamente dita. Vamos entrar nessa discussão. Mas antes de começar a enumeração e definição desses atributos, é importante observar ainda que os atributos morais de Deus, conforme revelados em suas obras, providência e palavra, lançam muita luz sobre o assunto que está diante de nós. Também os muitos preceitos da Bíblia e o desenvolvimento da benevolência assim revelado assistir-nos-ão muito, conforme prosseguirmos em nossas indagações a respeito desse importante assunto. Uma vez que a Bíblia afirma expressamente que o amor compreende todo o caráter de Deus; que o amor é tudo o que a lei requer do homem; que o fim da verdadeira virtude é só uma modalidade do amor ou benevolência; ou seja, que todo estado mental requerido pela Bíblia e reconhecido como virtude pode, em última análise, ser resumido em amor ou benevolência. Em outras palavras, toda virtude é só um dos elementos, peculiaridades, características ou atributos da benevolência. Isso diz respeito aos atributos morais de Deus. Eles são, conforme se disse, só atributos da benevolência. São apenas as qualidades essenciais que pertencem à própria natureza da benevolência, as quais são manifestadas e colocadas em atividade sempre que a benevolência é introduzida em certas circunstâncias e relações. A benevolência é justa, misericordiosa, etc. Tal é sua natureza que, em devidas circunstâncias, essas qualidades, junto com muitas outras, manifestar-se-ão em atos executivos.1 Isso é e deve ser verdade em relação a todo ser santo.

 

Passo agora a destacar os atributos daquele amor que se constitui obediência à lei de Deus.

À medida que prosseguir, chamarei atenção para os estados do intelecto e da sensibilidade, e também para o curso de conduta visível implicados na existência desse amor em alguma mente -- implicados em sua existência como conseqüência necessária dela pela lei da causa e efeito. Esses atributos são:

1. Voluntariedade. Isso quer dizer que se trata de um fenômeno da vontade. Há um estado da sensibilidade com freqüência expresso pelo termo amor. O amor pode existir e, com freqüência, existe, como todos sabem, na forma de um mero sentimento ou emoção. O termo é com freqüência usado para expressar a emoção de apego ou afeto, como algo distinto de um estado mental voluntário ou uma escolha da vontade. Essa emoção ou sentimento, como todos estamos cientes, é puramente um estado involuntário da mente. Por ser um fenômeno da sensibilidade e, é claro, um estado passivo da mente, não possui em si caráter moral. A lei de Deus requer amor ou boa vontade voluntária, como se demonstrou várias vezes. Esse amor consiste em escolha, intenção. Significa escolher o máximo bem-estar de Deus e do universo de seres sensíveis como um fim. E evidente que a voluntariedade deve ser uma de suas características. A palavra benevolência expressa essa idéia.

Se ela consiste em escolha, se é um fenômeno da vontade, deve controlar os pensamentos e estados da sensibilidade, bem como a ação visível. Esse amor, portanto, não só consiste num estado de consagração a Deus e ao universo, mas também implica emoções profundas de amor a Deus e aos homens. Ainda que seja um fenômeno da vontade, ele implica a existência de todos aqueles sentimentos de amor e afeição a Deus e aos homens que necessariamente resultam da consagração do coração ou vontade ao máximo bem-estar deles. Também implica todo aquele curso visível de vida que necessariamente flui de um estado de vontade consagrada a esse fim. Tenha-se em mente que se esses sentimentos não brotam da sensibilidade e se esse curso de vida não existe, ali não existe o verdadeiro amor ou a consagração voluntária a Deus e ao universo requerido pela lei. Aqueles brotam desta por uma lei de necessidade. Aqueles, ou seja, sentimentos e emoções de amor, e uma vida exterior correta, podem existir sem esse amor voluntário, conforme terei ocasião de mostrar no devido momento; mas esse amor não pode existir sem aqueles, uma vez que brotam dele por uma lei de necessidade. Essas emoções variam em força, de acordo com as variações da constituição e das circunstâncias, mas precisam existir em algum grau perceptível, desde que a vontade esteja numa atitude benevolente.

2. A liberdade é um atributo desse amor. A mente é livre e espontânea em seu exercício. Ela faz essa escolha quanto possui a capacidade, em todo momento, de escolher a gratificação própria como um fim. Disso, todo agente moral tem consciência. Trata-se de uma escolha livre e, portanto, responsável.

3. Inteligência. Ou seja, a mente escolhe esse fim de maneira inteligente. Ela não só sabe o que escolhe e por que escolhe, mas também que escolhe de acordo com os ditames do intelecto e com a lei de Deus; que o fim é digno de ser escolhido e que, por esse motivo, o intelecto exige que seja escolhido e também que é escolhido por seu valor intrínseco.

Porque a voluntariedade, liberdade e inteligência são atributos naturais desse amor, o que se segue são seus atributos morais.

4. A virtude é um atributo do amor. Virtude é um termo que expressa o caráter moral da benevolência; sua correção moral. Correção moral é perfeição, retidão ou integridade moral. O termo destaca ou designa sua relação com a lei moral e expressa sua conformidade com ela.

No exercício desse amor ou escolha, a mente tem consciência da retidão, ou de estar de acordo com a lei moral ou obrigação moral. Em outras palavras, está consciente de ser virtuosa ou santa, de ser como Deus, de amar o que deve ser amado e de consagração ao fim correto.

Uma vez que essa escolha está de acordo com as demandas do intelecto, a mente, em seu exercício, está ciente da aprovação daquele poder do intelecto a que chamamos consciência. A consciência deve aprovar esse amor, escolha ou intenção.

De novo: Uma vez que a consciência aprova essa escolha, existe e deve existir na sensibilidade um sentimento de felicidade ou satisfação, um sentimento de contentamento ou prazer no amor que está no coração ou vontade. Esse amor, portanto, sempre produz aprovação própria na consciência, e a satisfação própria na sensibilidade; e esses sentimentos são com freqüência muito intensos e alegres, já que a mente, no exercício desse amor sincero, é, às vezes, levada a exultar com gozo inefável e repleto de glória. Esse estado mental nem sempre ou necessariamente resulta em gozo. Depende muito, quanto a isso, da nitidez das perspectivas intelectuais, do estado da sensibilidade e da manifestação da aprovação divina à alma. Mas onde não há paz, ou aprovação da consciência e, por conseguinte, um estado tranqüilo da sensibilidade, não há esse amor. Elas são ligadas por uma lei de necessidade e devem, é claro, aparecer no campo da consciência quando existe esse amor. Estão, portanto, implícitas no amor que se constitui obediência à lei de Deus. Deve haver paz mental consciente e alegria consciente em Deus onde existe o verdadeiro amor a Deus.

5. O desinteresse é outro atributo desse amor. Por desinteresse não se quer dizer que a mente não tenha qualquer interesse no objeto amado, pois na realidade está profundamente interessada nele. Mas esse termo expressa a escolha que ela faz de um fim último por si e não meramente porque diz respeito a ela mesma. Esse amor é desinteressado no sentido de que se escolhe o máximo bem-estar de Deus e do universo, não de acordo com sua relação com ela própria, mas por seu valor intrínseco e infinito. E esse atributo em particular que distingue esse amor do amor egoísta. O amor egoísta faz da relação de bem para si a condição para escolhê-lo. O bem de Deus e do universo, caso chegue a ser escolhido, é só escolhido como um meio ou condição de promover o máximo bem dela mesma. Mas esse amor não faz do bem próprio seu fim, mas o bem para Deus e para o ser em geral.

Uma vez que o desinteresse é um atributo desse amor, ele não busca o próprio bem, mas o bem dos outros. "A caridade (amor)... não busca os seus interesses" (1 Co 13.5). Ele compreende, em seu abraço abrangente, o bem do ser em geral e, é claro, por necessidade, garante uma vida exterior e um sentimento interior correspondentes. O intelecto será empregado para encontrar caminhos e meios para a promoção desse fim. A sensibilidade vibrará de alegria pelo bem de todos e de cada um; regozijará com o bem dos outros como se dele fosse e lamentará com a dor dos outros como se dele fosse. Ela se alegrará com os que se alegram e chorará com os que choram (Rm 12.15). Não haverá nem poderá haver inveja da prosperidade dos outros, mas alegria sincera, alegria tão real e, com freqüência, tão profunda, quanto a que teria com a prosperidade dela mesma. A benevolência tem prazer com o que ocorre de bom com qualquer pessoa, enquanto o egoísmo é por demais invejoso diante do bem dos outros, até para desfrutar do próprio bem. Há uma economia divina na benevolência. Cada alma benevolente não só desfruta do bem dela mesma, com também desfruta do bem de todas as outras, desde que tome conhecimento de que estão felizes. A pessoa bebe no rio do gozo divino. Não só se alegra em fazer o bem para os outros, como também em vê-los alegrar com o que seja bom. Ela se alegra na alegria de Deus e na alegria dos anjos e dos santos. Ela também se alegra no bem de todos os seres sensíveis. Ela fica feliz ao contemplar o prazer dos animais do campo, das aves do céu e dos peixes do mar. Ela participa de toda alegria e de todo sofrimento que lhe chega ao conhecimento; sua participação nos sofrimentos dos outros não é um sentimento de pura dor. É um verdadeiro luxo simpatizar com as dores dos outros. Ela não poderia passar sem isso. Essa simpatia conforma-se de tal maneira com seu sentimento de adequação e propriedade que, juntamente com a sensação de dor há uma doce sensação de aprovação própria; de modo que uma simpatia benevolente com as dores dos outros não é de modo algum incoerente com a felicidade e com a felicidade perfeita. Deus possui essa simpatia. Com freqüência Ele a expressa ou manifesta de algum modo. Existe, de fato, um profundo deleite quando se participa das dores dos outros. Deus e os anjos e todos os seres santos sabem o que é isso. Onde não se manifesta esse resultado do amor, não existe o próprio amor. A inveja diante da prosperidade, influência ou o bem dos outros, e a ausência de gozo sensível diante do bem desfrutado por outros e de simpatia com os sofrimentos dos outros provam de modo conclusivo que esse amor não existe. Existe nesse amor uma expansividade, uma amplidão de abrangência, uma universalidade e um desinteresse divino, que se manifestam necessariamente em legados liberais de atos liberais para Sião e num fluir copioso de sentimento de simpatia, tanto nas alegrias como nas tristezas, quando as devidas situações apresentam-se à mente.

6. A imparcialidade é outro atributo desse amor: Essa palavra não quer insinuar que a mente seja indiferente ao caráter daquele que está feliz ou angustiado; que estaria igualmente satisfeita em ver os perversos ou os justos eterna e perfeitamente benditos. Mas quer dizer que, havendo igualdade em outros fatores, a mente só considera o valor intrínseco do bem-estar deles. Havendo igualdade em outros fatores, não importa a quem pertence o bem. Ela não diz respeito a pessoas. O bem do ser é seu fim e procura promover todo interesse, de acordo com seu valor relativo. O amor egoísta é parcial. Ele busca promover em primeiro lugar o interesse próprio e, depois, os interesses que mantêm com ele uma relação que, pelo menos de maneira indireta, promoverão a gratificação dele mesmo. O amor egoísta possui seus favoritos, seus preconceitos irracionais e ridículos. Ele é influenciado pela cor, família, nação e outros fatores do gênero. Mas a benevolência não conhece nem judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem branco nem preto, bárbaro, cita, europeu, asiático ou americano, mas vê cada homem como homem e, em virtude de sua humanidade comum, chama cada homem de irmão e busca o interesse de todos e de cada um. A imparcialidade, sendo um atributo desse amor, manifestar-se-á, é claro, na vida observável e no temperamento e espírito da pessoa. Esse amor não pode ter comunhão com aqueles preconceitos absurdos e ridículos com freqüência abundantes entre cristãos nominais. Também não será acalentado, mesmo por um momento, na sensibilidade daqueles que o exercem. A benevolência não reconhece uma classe privilegiada por um lado, ou uma classe proscrita, por outro. Ela garante na sensibilidade uma aversão total a essas discriminações, manifestas e alardeadas de maneira tão odiosas, encontradas exclusivamente num estado egoísta da vontade. O fato de que uma pessoa é uma pessoa, e não seja alguém de nosso grupo, ou de nossa compleição, ou de nossa cidade, estado ou nação -- de que é uma criatura de Deus, de que é capaz de manifestar virtude e felicidade, essas são as considerações em que se baseia esse amor divinamente imparcial. Aquilo que a mente considera é o valor intrínseco e não o fato de serem interesses ligados a si. Mas aqui é importante repetir a observação de que a economia da benevolência exige que quando dois interesses são considerados de igual valor para garantir o máximo bem, cada um deve empenhar seus esforços onde pode empenhá-los para a máxima vantagem. Por exemplo, todo homem mantém relações tais que consegue obter o máximo bem buscando promover o interesse e a felicidade de certas pessoas em lugar de outras; sua família, seus parentes, seus companheiros, seus vizinhos imediatos e aqueles com quem, na providência de Deus, mantém relações tais que lhe dão acesso a eles e influência sobre eles. Não é pouco razoável, não é parcial, mas razoável e imparcial empenhar nossos esforços mais diretamente neles. Assim, embora a benevolência considere todo interesse de acordo com seu valor relativo, é razoável ao empenhar seus esforços na direção em que há uma possibilidade de realizar o máximo bem. Isso, digo, não é parcialidade, mas imparcialidade; pois, entenda-se, não são as pessoas em particular a quem se pode fazer o bem, mas o volume de bem que pode ser realizado, o que dirige os esforços da benevolência. Não é porque a família é minha, nem porque o bem-estar deles é, obviamente, mais valioso em si que o bem-estar da família de meus vizinhos, mas porque minhas relações me permitem maiores facilidades de lhes fazer o bem, tenho a obrigação específica de almejar primeiro a promoção do bem deles. Portanto, diz o apóstolo: "Mas, se alguém não tem cuidado dos seus e principalmente dos da sua família, negou a fé e é pior do que o infiel" (1 Tm 5.8). Falando de maneira estrita, a benevolência estima cada bem conhecido de acordo com seu valor intrínseco e relativo; mas na prática trata cada interesse de acordo com a probabilidade percebida de garantir o máximo volume de bem no todo. Essa é uma verdade de grande importância prática. Ela é desenvolvida na experiência e observação de todo dia e hora. É manifesta na conduta de Deus e de Cristo, dos apóstolos e mártires. É pressuposta em toda parte nos preceitos da Bíblia e manifesta em toda parte na história do esforço benevolente. Entenda-se, portanto, que a imparcialidade, como um atributo da benevolência, não implica que seu esforço para promover o bem não será modificado pelas relações e circunstâncias. Mas, pelo contrário, esse atributo implica que os esforços para garantir o fim máximo da benevolência, a saber, o volume máximo de bem para Deus e para o universo, será modificado por aquelas relações e circunstâncias que permitem as maiores vantagens para que se faça o bem.

A imparcialidade da benevolência sempre faz com que se dê o máximo de destaque aos interesses de Deus porque o bem-estar dele é de valor infinito e, é claro, a benevolência deve estar acima de tudo para Ele. A benevolência, sendo amor imparcial, obviamente considera que os interesses e o bem-estar de Deus possuem valor infinitamente superior ao da soma de todos os outros interesses. A benevolência considera os interesses de nosso próximo como se fossem nossos, simplesmente porque possuem valor intrínseco equivalente aos nossos. A benevolência, por conseguinte, é sempre suprema para com Deus e igualitária para o homem.

7. A universalidade é outro atributo desse amor. A benevolência escolhe o máximo bem do ser em geral. Ela nada exclui de sua consideração; pelo contrário, abarca tudo em sua ampla esfera. Mas com isso não se quer dizer que busque, na prática, promover o bem de cada indivíduo. Promoveria, se pudesse; mas busca o máximo volume praticável de bem. O interesse de cada indivíduo é estimado de acordo com seu valor intrínseco, quaisquer que sejam as circunstâncias ou caráter de cada um. Mas o caráter e relações podem e devem modificar as manifestações de benevolência, ou seus esforços em buscar a promoção desse fim. Um caráter perverso e relações e considerações governamentais podem impedir a benevolência de buscar o bem de alguns. Além disso, podem exigir que uma angústia real seja infligida a alguns, como alerta para que outros acautelem-se contra seus modos destrutivos. Mas por universalidade, como um atributo da benevolência, entende-se que a boa vontade é de fato exercida para com todos os seres sensíveis, quaisquer que sejam seu caráter e relações; e que, quando o máximo bem de uma parte maior não a impede, a felicidade de todos e de cada um deve ser buscada com empenho equivalente ao seu valor relativo e à perspectiva de garantir o interesse de cada um. Tanto inimigos como amigos, tanto estrangeiros e forasteiros como parentes e vizinhos próximos serão abarcados em seu doce abraço. É o estado mental exigido por Cristo no preceito verdadeiramente divino: "Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem" (Mt 5.44). Esse atributo da benevolência é gloriosamente conspícuo no caráter de Deus. Só seu amor para com os pecadores responde pelo fato de hoje não estarem na perdição. Que Deus almeja garantir o máximo bem do maior número é ilustrado pela manifestação de sua gloriosa justiça na punição dos perversos. Seu cuidado universal por todos os níveis e condições de seres sensíveis, manifesto em suas obras e providência, ilustra de maneira bela e gloriosa a verdade de que "as suas misericórdias são sobre todas as suas obras" (SI 145.9).

É fácil ver que a universalidade deve ser uma modificação ou atributo da verdadeira benevolência. Ela consiste em boa vontade, ou seja, em escolher o máximo bem do ser como tal, buscar o bem de todos e de cada um, desde que o bem de cada um seja coerente com o máximo bem para o todo. A benevolência não só deseja e busca o bem de seres morais, como também o bem de toda existência sensível, desde o menor micróbio até a ordem máxima dos seres. Ela obviamente produz um estado de sensibilidade que se altera com toda felicidade e toda dor. Ela se compadece com a agonia de um inseto e se alegra com sua alegria. Deus assim age e assim agem todos os seres santos. Onde não há essa participação nas alegrias e dores dos seres universais, não há benevolência. Observem que o bem é seu fim; quando isso é promovido por meios adequados, os sentimentos são gratificados. Quando presencia o mal, o espírito benevolente participa de modo necessário e profundo.

8. A eficiência é outro atributo ou característica da benevolência.2 A benevolência consiste em escolha, intenção. Ora, sabemos pela consciência que a escolha ou intenção constitui a fonte mais profunda de poder de ação para a mente. Se sou honesto em intentar algo, não posso deixar de me esforçar para realizar aquilo que intento, desde que o considere possível. Se escolho um fim, essa escolha deve gerar e gerará energia para garantir seu fim. Quando a benevolência é a escolha, preferência ou intenção suprema da mente, é evidentemente impossível que não produza os esforços para garantir seu fim. Ela deve deixar de existir ou de se manifestar em ação vigorosa para garantir seu fim logo que e sempre que a inteligência julgue sábio fazê-lo. Se a vontade ceder à inteligência na escolha de um fim, com certeza obedecerá à inteligência na busca de tal fim. A escolha, intenção, é a causa de toda a atividade externa dos agentes morais. Todos eles escolheram algum fim, seja a gratificação própria, seja o máximo bem do ser; e toda azáfama agitada da população numerosa deste mundo nada mais é que uma escolha ou intenção tentando alcançar seu fim.

A eficiência, portanto, é um atributo da intenção benevolente. Ela deve dar, dará e dá energia a Deus, aos anjos e aos santos no Céu. Foi esse atributo da benevolência que levou Deus a dar seu Filho Unigênito e levou o Filho a se dar "para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3.16).

Se o amor é eficiente na produção de atos externos e eficiente na produção de sentimentos internos, é eficiente para despertar o intelecto e colocar em ação o mundo do pensamento a fim de elaborar meios para concretizar esse fim. A benevolência lida com todos os atributos naturais infinitos de Deus. É a torrente que move todo o Céu. É o grande poder que engrossa o volume da mente e agita o mundo como um vulcão abafado. Olhem para os céus acima. É a benevolência que os mantém. E a benevolência que sustenta os orbes que vagam em seus cursos. Foi a boa vontade empenhando-se por concretizar seu fim que primeiro manifestou o poder criativo. O mesmo poder, pelo mesmo motivo, ainda dá energia e continuará a dar energia para a realização de seu fim, uma vez que Deus é benevolente. E, ó, que pensamento glorioso, que a benevolência infinita está manejando e manejará para sempre os atributos naturais para a promoção do bem! Nenhuma mente, senão uma infinita, pode começar a conceber o volume do bem que Jeová obterá. O pensamento bendito e glorioso! Mas é e deve ser uma realidade, tão certo como Deus e o universo existem. Não se trata de vã imaginação; trata-se de uma das mais certas e também mais gloriosas verdades do universo. Montanhas de granito não passam de vapor em comparação a isso. Ora, os verdadeiramente benevolentes na Terra e no Céu simpatizarão com Deus. O poder que dá energia a Deus é o mesmo que os supre. Um princípio os anima e move, e esse princípio é o amor, a boa vontade para com o ser universal. Nossa alma bem pode clamar: Amém, Deus abençoe a obra; que esse poder grandioso agite e controle a mente universal, até que todos os males da Terra sejam removidos e até que tudo possa ser santificado e revestido com as roupas de contentamento eterno.

Uma vez que a benevolência é necessariamente, pela própria natureza, ativa e eficiente em promover esforços para garantir seu fim, e uma vez que seu fim é o máximo bem do ser, segue-se que todos os que sejam verdadeiramente religiosos serão e devem ser, pela própria natureza da verdadeira religião, ativos no empenho de promover o bem do ser. Embora o cristão possa esforçar-se, isso é para ele tão natural quanto respirar. Ele possui dentro de si a própria fonte de atividade, um coração voltado para a promoção do máximo bem do ser universal. Enquanto viver e for ativo, será e deve ser dirigido para esse fim. Que nunca se esqueça. Um cristão ocioso, inativo, ineficiente é uma contradição de termos. A religião é um princípio essencialmente ativo e, quando e enquanto existe, deve exercitar-se e manifestar-se. Não é um simples desejo bom, mas boa vontade. Os homens podem ter desejos e esperá-los e viver por eles, sem se esforçar para concretizar esses desejos. Podem desejar sem agir. Se a vontade deles for ativa, a vida deles precisa ser ativa. Se de fato escolhem um fim último, essa escolha deve manifestar-se. O pecador manifesta e deve manifestar sua escolha egoísta, e assim igualmente os santos, sua benevolência.

9. A satisfação na santidade ou excelência moral é outro atributo da benevolência. Isso consiste na benevolência vista em suas relações com os seres santos. Esse termo também expressa tanto um estado da inteligência como da sensibilidade. Os agentes morais são constituídos de tal modo que necessariamente aprovam a dignidade ou excelência moral, são compelidos a respeitar e aprová-la por uma lei da inteligência. A isso não é infreqüente considerarem evidência de bondade em si. Ora, isso é, sem dúvida, tão comum no Inferno quanto no Céu. O mais vil dos pecadores na Terra ou no Inferno tem, por uma constituição inalterável de sua natureza, uma necessidade que lhe é imposta de prestar honra intelectual à excelência moral. Quando um agente moral contempla com intensidade a excelência moral, pronunciando-se de maneira enfática sua aprovação intelectual, o resultado natural e, com freqüência, necessário é um sentimento correspondente de satisfação ou prazer na sensibilidade. Mas sendo isso um estado mental de todo involuntário, não possui caráter moral. A satisfação, como fenômeno da vontade, consiste em desejar a máxima bem-aventurança real do ser santo em particular, como um bem em si, e sob condição de sua excelência moral.

Esse atributo da benevolência é a causa de um estado de satisfação da sensibilidade. É verdade que os sentimentos de satisfação podem existir quando não existe satisfação da vontade. Mas a satisfação do sentimento com certeza existirá quando existir a satisfação da vontade. A satisfação da vontade implica satisfação da consciência ou a aprovação da inteligência. Quando existe uma satisfação da inteligência e da vontade, deve-se seguir, é claro, a satisfação da sensibilidade.

Merece aqui a máxima atenção o fato de que essa satisfação do sentimento é em geral denominada amor a Deus e aos santos, na linguagem comum dos cristãos e com freqüência na linguagem popular da Bíblia. É um estado vigoroso e agradável da sensibilidade, e a consciência, é claro, pode muito bem observá-lo. Aliás, talvez seja a prática mais comum chamar de amor a esse fenômeno da sensibilidade; e, por falta de uma discriminação justa, falar dele como o que constitui a religião. Muitos parecem supor que esse sentimento de prazer em Deus e afeto por Ele seja o amor requerido pela lei moral. Esses têm consciência de não serem voluntários nisso, tanto quanto conseguem. Eles julgam seu estado religioso, não pelo fim para o qual vivem, pela escolha ou intenção deles, mas por suas emoções. Quando se vêem fortemente imbuídos de emoções de amor para com Deus, consideram-se em estado de graça com Deus. Mas quando os sentimentos ou emoções de amor não estão ativos, evidentemente julgam que têm pouca ou nenhuma religião. E notável como a religião é considerada fenômeno da sensibilidade, como se consistisse em meros sentimentos. Isso é tão comum, aliás, que é quase regra, quando cristãos professos falam de sua religião, falarem dos sentimentos ou do estado de sua sensibilidade, em vez de falarem de sua consagração consciente a Deus e ao bem do ser.

É também um tanto comum falarem de suas concepções de Cristo e da verdade de modo tal que demonstram considerar os estados do intelecto parte, pelo menos, de sua religião. E importantíssimo que entre os cristãos só prevaleçam concepções sobre esse assunto tão momentoso. A virtude, ou religião, conforme se repetiu várias vezes, deve ser um fenômeno da vontade. O atributo da benevolência que estamos considerando é satisfação da mente em Deus, na perspectiva mais comum pela qual as Escrituras a apresentam e também na mais comum das formas pelas quais é revelada no campo da consciência. As Escrituras com freqüência assinalam a bondade de Deus como uma razão para amá-lo, e os cristãos são cônscios de ter em alta consideração sua bondade em seu amor para com Ele; quero dizer, em sua boa vontade para com Ele. Eles desejam o bem para Deus e prestam todo louvor e glória a Ele, porque Ele os merece. Disso têm consciência. Ora, conforme se demonstrou em aula anterior, em seu amor ou boa vontade para com Deus, não consideram a bondade o motivo fundamental para desejarem o bem para Ele. Ainda que a bondade seja o que, no momento, mais lhes impressiona a mente, é preciso que o valor intrínseco de seu bem-estar seja pressuposto e seja considerado por eles, ou logo desejar-lhe-ão o mal em lugar do bem. Ao desejar-lhe o bem, precisam pressupor seu valor intrínseco para Deus como a razão fundamental para desejá-lo; e sua bondade uma razão secundária ou condição; mas eles têm consciência de serem muito influenciados ao desejar seu bem em particular por uma consideração de sua bondade. Caso eu pergunte a um cristão por que ama a Deus ou por que exerce boa vontade para com Ele, é provável que responda: porque Deus é bom. Mas, suponham que se perguntasse ainda por que deseja o bem e não o mal para Deus, ele diria: porque o bem é um bem valioso para Ele. Ou, se voltasse à mesma resposta de antes, porque Deus é bom, daria essa resposta só porque pensaria ser impossível alguém não pressupor e saber que o bem é desejado em lugar do mal por causa de seu valor intrínseco. O fato é que o valor intrínseco do bem-estar é necessariamente assumido pela mente e sempre pressuposto por ela como uma verdade primeira. Quando se percebe um ser virtuoso, sendo essa verdade primeira pressuposta de maneira espontânea e necessária, a mente só pensa na razão ou condição secundária, ou virtude do ser ao desejar o bem para Ele.

Antes de deixar este assunto, devo advertir novamente sobre a questão do amor complacente como um fenômeno da sensibilidade e também como um fenômeno do intelecto. Se eu não estiver errado, há erros tristes e enganos grosseiros e ruinosos acolhidos por muitos nesse assunto. O intelecto, por necessidade, aprova de modo perfeito o caráter de Deus quando o compreende. O intelecto está tão ligado à sensibilidade que, quando percebe a excelência divina ou a excelência da lei divina em sua plena luz, a sensibilidade é afetada pela percepção do intelecto como algo decorrente e necessário; de modo que com freqüência brilha e queima na sensibilidade, enquanto a vontade ou o coração não é afetada. A vontade permanece numa escolha egoísta, enquanto o intelecto e a sensibilidade são impressionados de modo poderoso e a sensibilidade é, sem dúvida, muitas vezes confundida com a verdadeira religião. Temos ilustrações inegáveis disso na Bíblia e casos semelhantes na vida comum. "Mesmo neste estado, ainda me procuram dia a dia, têm prazer em saber os meus caminhos; como povo que pratica a justiça e não deixa o direito do seu Deus, perguntam-me pelos direitos da justiça, têm prazer em se chegar a Deus" (Is 58.2). "Eis que tu és para eles como quem canta canções de amor, que tem voz suave e tange bem; porque ouvem as tuas palavras, mas não as põem por obra" (Ez 33.32).

Nada é mais importante que compreender para sempre que a religião é sempre e necessariamente um fenômeno da vontade; que ela sempre e necessariamente produz ação exterior e sentimento interior; que, por conta da correlação entre o intelecto e a sensibilidade, quase toda e qualquer variedade de sentimentos pode existir na mente, conforme produzida pelas percepções do intelecto, qualquer que seja o estado da mente; que a menos que tenhamos consciência da boa vontade ou da consagração a Deus e ao bem do ser, a menos que tenhamos consciência de viver para esse fim, de nada nos adianta, quaisquer que sejam nossas concepções e sentimentos.

Também nos cabe considerar que embora essas concepções e sentimentos possam existir estando o coração errado, com certeza existirão quando o coração estiver correto; que pode haver um sentimento, um sentimento profundo, quando o coração está numa atitude egoísta; ainda assim, que existirá e deverá existir uma profunda emoção e ação vigorosa quando o coração estiver correto. Lembrem-se que a satisfação, sendo um fenômeno da vontade, é sempre uma característica marcante do verdadeiro amor a Deus; que a mente é afetada e conscientemente influenciada a desejar a real e infinita bem-aventurança de Deus, em consideração à sua bondade. A bondade de Deus não é, conforme se demonstrou várias vezes, a razão fundamental da boa vontade, mas é uma razão ou condição, tanto da possibilidade de desejar como da obrigação de desejar sua bem-aventurança em particular. Ela assinala para si e para os outros a bondade de Deus como o motivo para desejar seu bem, em lugar do valor intrínseco do bem; porque este último é tão universal e pressuposto de maneira tão necessária, que não pensa em mencioná-lo, sempre considerando óbvio que isso é e deve ser compreendido.

10. A oposição ao pecado é outro atributo ou característica do verdadeiro amor a Deus.

Esse atributo com certeza está implícito na própria essência e natureza da benevolência. A benevolência é ter boa vontade ou desejar o máximo bem do ser como um fim. Ora, nada no universo destrói mais esse bem que o pecado. A benevolência não pode senão opor-se para sempre ao pecado, como algo abominável a que necessariamente odeia. E absurdo e contraditório afirmar que a benevolência não se opõe ao pecado. Deus é amor ou benevolência. Ele deve, portanto, ser o oponente inalterável do pecado -- de todo pecado, e toda forma e grau.

Mas há um estado, tanto do intelecto como da sensibilidade, muitas vezes confundido com a oposição da vontade ao pecado. A oposição a todo pecado é e deve ser um fenômeno da vontade e só por essa base torna-se virtude. Mas ela muitas vezes existe como um fenômeno do intelecto e igualmente da sensibilidade. O intelecto não pode contemplar o pecado sem desaprová-lo. Essa desaprovação é com freqüência confundida com a oposição do coração ou da vontade. Quando o intelecto desaprova com veemência e denuncia o pecado, existe natural e necessariamente um sentimento correspondente de oposição a ele na sensibilidade, um sentimento de aversão, de ódio, de repugnância. Isso é amiúde confundido com a oposição da vontade ou coração. Isso é manifesto pelo fato de que com freqüência os pecadores mais notórios manifestam forte indignação diante da opressão, injustiça, falsidade e muitas outras formas de pecado. Esse fenômeno da sensibilidade e do intelecto, conforme eu disse, é muitas vezes confundido com uma oposição virtuosa ao pecado, o que não pode ser, a menos que implique um ato da vontade.

Mas deve-se lembrar que a oposição virtuosa ao pecado é uma característica do amor a Deus e ao homem, ou seja, a benevolência. Não é possível essa oposição ao pecado coexistir com algum grau de pecado no coração. Ou seja, essa oposição não pode coexistir com uma escolha pecaminosa. A vontade não pode ao mesmo tempo opor-se ao pecado e cometê-lo. Isso é impossível, e a suposição implica uma contradição. A oposição ao pecado como um fenômeno do intelecto ou da sensibilidade pode existir; em outras palavras, o intelecto pode desaprovar com veemência o pecado, e a sensibilidade pode sentir-se profundamente contrária a certas formas dele, enquanto, ao mesmo tempo, a vontade pode apegar-se à indulgência consigo mesma em outras formas. Esse fato sem dúvida responde pelo engano corriqueiro de que podemos, ao mesmo tempo, exercer uma oposição virtuosa ao pecado e ainda continuar a cometê-lo.

Muitos estão, sem dúvida, labutando sob esse engano fatal. Eles estão cônscios não só de uma desaprovação intelectual do pecado em certas formas, mas também, às vezes, de fortes sentimentos de oposição a ele. E mesmo assim também estão cônscios de continuar a cometê-lo. Assim, concluem que possuem neles um princípio de santidade e também um princípio de pecado, que são em parte santos e em parte pecadores ao mesmo tempo. A oposição intelectual e emocional deles, supõem-na uma oposição santa quando, sem dúvida, é apenas tão comum no Céu e, até, mais que na Terra, uma vez que o pecado é mais descoberto ali do que o é em geral aqui.

Mas agora pode surgir a pergunta: como é possível o intelecto e a sensibilidade estarem em oposição ao pecado e, ainda assim, perseverar-se nele? Que motivo a mente pode ter para uma escolha pecaminosa quanto levada a ela não pelo intelecto nem pela sensibilidade? A filosofia desse fenômeno exige explicação. Vamos nos dedicar a ela.

Sou um agente moral. Meu intelecto necessariamente desaprova o pecado. Minha sensibilidade está tão ligada ao meu intelecto, que simpatiza com ele ou é afetada por suas percepções e julgamentos. Eu considero o pecado. Eu necessariamente o desaprovo e o condeno. Isso afeta minha sensibilidade. Eu o detesto e abomino. Ainda assim, o cometo. Ora, a que se deve isso? O método usual o atribui a uma depravação na própria vontade, um estado decaído ou corrompido da faculdade, de modo que persevera na escolha do pecado pelo próprio pecado. Ainda que desaprovado pelo intelecto e abominado pela sensibilidade, ainda assim, dizem, é a depravação inerente da vontade que é pertinaz em apegar-se ao pecado apesar de tudo e continuará a fazê-lo até que tal faculdade seja renovada pelo Espírito Santo e uma tendência ou inclinação santa seja inculcada na própria vontade.

Mas há um engano crasso. Para ver a verdade nesse assunto, é de importância vital inquirir o que é pecado. Todos aceitam que o egoísmo é pecado. Comparativamente poucos parecem compreender que o egoísmo é a totalidade do pecado, que toda forma de pecado pode resumir-se em egoísmo, exatamente como toda forma de virtude pode resumir-se em benevolência. Não é meu propósito agora mostrar que o egoísmo é a totalidade do pecado. Por enquanto é suficiente tomar a admissão de que o egoísmo é pecado. Mas que é egoísmo? É a escolha da gratificação própria como um fim. E a preferência de nossa própria gratificação à custa do máximo bem da existência universal. A gratificação própria é o fim supremo do egoísmo. Essa escolha é pecaminosa. Ou seja, a moral dessa escolha egoísta é pecado. Ora, em caso algum nosso pecado é ou pode ser escolhido por si ou como um fim. Sempre que algo é escolhido para gratificar a si próprio não é escolhido porque a escolha é pecaminosa; mesmo assim, é pecaminosa. Não é o caráter pecaminoso da escolha em que a preferência se fixa como um fim ou por si, mas a gratificação trazida pelo objeto escolhido. Por exemplo, furtar é pecado. Mas a vontade, no ato de furtar, não almeja nem termina no caráter pecaminoso do furto, mas no ganho ou gratificação esperada do objeto furtado. A bebedeira é pecaminosa, mas o bêbado não intenta ou escolhe o pecado por si ou como um fim. Ele não escolhe a bebida forte porque a escolha é pecaminosa, mas, mesmo assim, ela é. Escolhemos a gratificação, mas não o pecado, como um fim. Escolher a gratificação como um fim é pecado, mas o pecado não é o objeto da escolha. Nossa mãe, Eva, comeu o fruto proibido. Esse ato foi pecaminoso. Mas o objeto escolhido ou intentado não foi o pecado de comer, mas a gratificação que a fruta daria. O pecado não é e não pode ser escolhido como um fim por si, em caso algum. O pecado é só a qualidade do egoísmo. O egoísmo é a escolha, não do pecado como um fim ou por si, mas da gratificação própria; e essa escolha da gratificação própria como um fim é pecaminosa. Ou seja, a qualidade moral da escolha é pecado. Dizer que o pecado é ou pode ser escolhido por si é mentiroso e absurdo. E o mesmo que dizer que uma escolha pode terminar num elemento, qualidade ou atributo de si mesmo; que o objeto escolhido é de fato um elemento da própria escolha.

Mas dizem que os pecadores às vezes têm consciência de escolher o pecado por si ou porque é pecado; que eles possuem um estado mental tão maldoso, que amam o pecado por si; que "rolam o pecado como uma guloseima doce sob a língua"; que "engolem os pecados do povo de Deus como se comessem pão" (SI 14.4), ou seja, que amam os próprios pecados e os pecados dos outros, como amam a comida que lhes é necessária e os escolhem por esse motivo ou exatamente como escolhem a comida, que não só pecam com ânsia, mas também têm prazer nos que fazem o mesmo. Ora, tudo isso pode ser verdade, mas não desaprova de modo algum a posição que eu tomei, a saber, que o pecado jamais é e jamais pode ser escolhido como um fim ou por si. O pecado pode ser buscado e amado como um meio, mas jamais como um fim. A escolha da comida servirá de ilustração. A comida jamais é escolhida como um fim último; ela jamais pode ser escolhida desse modo. Ela é sempre um meio. E a gratificação ou a utilidade dela, de algum ponto de vista, que constitui a razão de escolhê-la. A gratificação é sempre o fim pelo qual o homem egoísta come. Aquilo que ele busca pode não ser única ou principalmente o prazer momentâneo de comer. Mas, apesar disso, se for egoísta, terá em vista a própria gratificação como um fim. Pode ser que não tenha em vista tanto uma gratificação presente, mas uma gratificação remota. Assim, ele pode escolher um alimento que lhe dê saúde e força para buscar alguma gratificação distante, a aquisição de bens ou outra coisa que lhe trará gratificação.

Pode acontecer de um pecador chegar a um estado de rebelião contra Deus e o universo, de caráter tão temerário que tenha prazer em desejar, fazer e dizer coisas pecaminosas só porque são pecaminosas e desagradáveis para Deus e para os seres santos. Mas, mesmo nesse caso, o pecado não é escolhido como um fim, mas como um meio de gratificar esse sentimento maldoso. E, afinal, a gratificação própria escolhida como um fim, não o pecado. O pecado é o meio e a gratificação própria, o fim.

Ora, estamos prontos para compreender como pode ocorrer de o intelecto e a sensibilidade estarem muitas vezes contra o pecado e, mesmo assim, a vontade apegar-se à indulgência. Um bêbado considera o caráter moral da bebedeira. Ele condena instantânea e necessariamente a abominação. Sua sensibilidade simpatiza com o intelecto. Ele detesta o caráter pecaminoso de beber bebida forte e detesta a si mesmo por isso. Ele tem vergonha e, fosse possível, cuspiria no próprio rosto. Ora, nesse estado, com certeza seria absurdo supor que poderia escolher o pecado de beber, como um fim, por si. Isso seria escolhê-lo por um motivo impossível e não por motivo algum. Mesmo assim, ele pode escolher continuar sua bebedeira, não por ser pecado, mas mesmo assim é pecado. Pois embora o intelecto condene o pecado de beber bebida forte, e a sensibilidade deteste o caráter pecaminoso da indulgência, entretanto ainda existe um apetite tão forte, não pelo pecado, mas pelo álcool, que ele busca a gratificação, apesar de ser pecaminoso. Assim é e assim deve ser em todos os casos em que o pecado é cometido diante das queixas do intelecto e da abominação da sensibilidade. A sensibilidade detesta o pecado, mas deseja com maior vigor o objeto escolhido, o qual é pecaminoso. A vontade num ser egoísta presta obediência ao impulso mais forte da sensibilidade, e o fim escolhido não é, em caso algum, o caráter pecaminoso do ato, mas a gratificação própria. Aqueles que supõem que essa oposição do intelecto ou da sensibilidade seja um princípio santo estão fatalmente enganados. É esse tipo de oposição ao pecado que com freqüência se manifesta entre homens perversos e que os leva a creditarem para si uma bondade ou virtude, sem possuir um átomo sequer disso. Esses não se considerarão moral e totalmente depravados, enquanto tiverem consciência de possuir dentro de si tamanha hostilidade para com o pecado. Mas eles devem compreender que essa oposição não vem da vontade, pois então não conseguiriam prosseguir no pecado; ela é um puro estado involuntário da mente, não possuindo qualquer caráter moral. Deve-se lembrar, portanto, que uma oposição virtuosa ao pecado é sempre e necessariamente um atributo da benevolência, um fenômeno da vontade; e que é naturalmente impossível que essa oposição da vontade coexista com a comissão do pecado.

Uma vez que essa oposição ao pecado está claramente implicada e é um atributo essencial da benevolência ou do verdadeiro amor a Deus, segue-se que a obediência à lei de Deus não pode ser parcial, no sentido de amarmos a Deus e pecarmos ao mesmo tempo.

11. A compaixão pelos miseráveis é também um atributo da benevolência ou do amor puro a Deus e aos homens. Essa benevolência é vista em suas relações com a desgraça e a culpa.

Há também uma compaixão que é um fenômeno da sensibilidade. Ela pode existir, e muitas vezes existe, na forma de uma emoção. Mas essa emoção, sendo involuntária, não possui em si caráter moral. A compaixão que é uma virtude e é requerida de nós como dever é um fenômeno da vontade, sendo, é claro, um atributo da benevolência. A benevolência, conforme se disse várias vezes, é manifestar boa vontade ou desejar a máxima felicidade e bem-estar de Deus e do universo por si ou como um fim. E impossível, portanto, pela própria natureza dela, que a compaixão pelos miseráveis não seja um de seus atributos. A compaixão da vontade para com a miséria é a escolha ou o desejo de que ela não existisse. A benevolência deseja que a felicidade exista pelo próprio valor dela. Ela deve, por conseguinte, desejar que a miséria não existisse. Esse atributo ou peculiaridade da benevolência consiste em desejar a felicidade do miserável. A benevolência, simplesmente considerada, é desejar o bem ou felicidade do ser em geral. A compaixão da vontade é um desejo particular de que o miserável seja feliz.

A compaixão da sensibilidade é um simples sentimento de pesar diante da miséria. Conforme se disse, não se trata de virtude. E só um desejo, mas não uma determinação; por conseguinte, não beneficia seu objeto. E o estado mental de que fala Jesus: "E, se o irmão ou a irmã estiverem nus e tiverem falta de mantimento cotidiano, e algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquentai-vos e fartai-vos; e lhes não derdes as coisas necessárias para o corpo, que proveito virá daí?" (Tg 2.15,16). Esse tipo de compaixão pode, evidentemente, coexistir com o egoísmo. Mas a compaixão de coração ou vontade não pode; pois consiste em desejar a felicidade do miserável por si mesma e, é claro, de maneira imparcial. Ela impedirá e, pela própria natureza, será obrigada a impedir que o eu promova seu fim, sempre que o possa fazer com sabedoria, ou seja, quando parecer que é exigido pelo máximo bem geral. Podem existir circunstâncias que tornem insensato expressar essa compaixão com o oferecimento real de alívio para o miserável. Tais circunstâncias impedem que Deus estenda alívio para os perdidos no Inferno. Não fossem o caráter e as relações governamentais deles, a compaixão de Deus sem dúvida realizaria esforços imediatos para alívio deles.

Podem existir muitas circunstâncias em que, embora a compaixão instigue o alívio de seu objeto, ainda assim, no todo, a miséria que existe é considerada o menor de dois males e, assim, a sabedoria da benevolência impede que se tomem medidas para salvar seu objeto.

Mas é de máxima importância fazer uma distinção cuidadosa entre a compaixão como um fenômeno da sensibilidade ou mero sentimento e a compaixão considerada como um fenômeno da vontade. Essa, deve-se lembrar, é a única forma de compaixão virtuosa. Muitos, pelas leis de sua constituição mental, sentem de maneira rápida e profunda e consideram-se com freqüência compassivos, embora raramente façam algo pelos oprimidos e miseráveis. A compaixão deles é um mero sentimento. Ela diz: "aquentai-vos e fartai-vos", mas nada lhes faz de útil. E esse atributo específico da benevolência que foi tão conspícuo na vida de Howard, Wilberforce e muitos outros filantropos cristãos.

Devo dizer antes de deixar a consideração deste atributo, que a vontade é muitas vezes influenciada pelo sentimento de compaixão. Nesse caso, a mente não é menos egoísta ao procurar promover o alívio e a felicidade de seu objeto que em qualquer outra forma de egoísmo. Nesses casos, a gratificação própria é o fim buscado, e o alívio do sofrimento, apenas um meio. A compaixão é instigada e a sensibilidade, profundamente afligida e agitada pela contemplação da miséria. A vontade é influenciada por esse sentimento e se esforça, por um lado, para aliviar a emoção dolorosa e, por outro, para gratificar o desejo de ver o sofredor feliz. Isso é só uma forma influente de egoísmo. Sem dúvida testemunhamos com freqüência manifestações desse tipo de gratificação própria. Nesse caso, a felicidade do miserável não é buscada como um fim, por si, mas como um meio de gratificação de nossos sentimentos. Isso não é obediência da vontade à lei do intelecto, mas a obediência ao impulso da sensibilidade. Não é uma compaixão natural e inteligente, mas exatamente a compaixão que muitas vezes vemos exercitada por meros animais. Eles arriscam e até dão a vida por um de seus ou por um homem que esteja sofrendo. Neles, isso não possui caráter moral, não havendo razão; para eles não é pecado obedecer à sensibilidade; antes, trata-se de uma lei da existência deles. Eles não podem deixar de fazê-lo. Para eles, portanto, buscar a gratificação própria como um fim não é pecado. Mas o homem possui razão; ele é obrigado a lhe obedecer. Ele deve desejar e buscar o alívio e a felicidade dos miseráveis, por si, ou pelo valor intrínseco deles. Quando o homem os busca por razão não superior à satisfação dos próprios sentimentos, nega a humanidade. Ele os busca não por causa do sofredor, mas em defesa própria, ou para aliviar a dor dele mesmo e para gratificar os próprios desejos. Isso nele é pecado.

Muitos, portanto, que se consideram muito benevolentes estão, afinal, só no exercício dessa forma influente de egoísmo. Eles se consideram santos, quando a santidade deles é só pecado. Merece aqui destaque especial o fato de que essa classe de pessoas parece para si mesma e para os outros muito mais virtuosa pelo modo como é levada manifesta e exclusivamente pelo impulso do sentimento. Elas têm consciência de sentir com profundidade, de serem mais sinceras e sérias na obediência aos sentimentos. Todos os que as conhecem também podem ver que sentem profundamente e que são influenciadas pelos sentimentos e não pelo intelecto. Ora, tão espessa é a escuridão da maioria das pessoas nesse assunto, que diversas louvam a si mesmas e aos outros simplesmente na proporção em que estão certas de serem influenciadas pela profundidade de seus sentimentos, em lugar do julgamento sóbrio.

Mas não posso deixar este assunto sem observar que, quando a compaixão existe como fenômeno da vontade, com certeza também existirá como uma sensação da sensibilidade. Um homem de coração compassivo também será um homem de sensibilidade compassiva. Ele sentirá e agirá. Entretanto, suas ações não serão conseqüência de seus sentimentos, mas resultado de um julgamento sóbrio. Três classes de pessoas consideram-se e são, em geral, consideradas por outros, realmente compassivas. A primeira classe manifesta muito sentimento de compaixão; mas a compaixão não lhes influencia a vontade; assim, não agem para alívio do sofrimento. Esses contentam-se com meros desejos e lágrimas. Eles dizem aquentai-vos e fartai-vos, mas nada oferecem aos que necessitam de alívio. Outra classe sente profundamente e se entrega aos sentimentos. É claro que são ativos e vigorosos no alívio do sofrimento. Mas, sendo governados pelo sentimento, em vez de serem influenciados pelo intelecto, não são virtuosos, mas egoístas. A compaixão deles é só uma forma influente de egoísmo. Uma terceira classe sente profundamente, mas não é governada pelos impulsos cegos do sentimento. Eles têm uma visão racional da questão, agem com sabedoria e vigor. Eles obedecem à razão. Seus sentimentos não os conduz e também não buscam a gratificação dos próprios sentimentos. Ora, estes últimos são virtuosos e, sem dúvida, os mais felizes dos três. Seus sentimentos são mais gratificados quanto menos buscam a gratificação. Eles obedecem ao intelecto, e, assim, têm a dupla satisfação do aplauso da consciência, enquanto seus sentimentos são gratificados plenamente ao ver o desejo compassivo realizado.

12. A misericórdia é também um atributo da benevolência. Esse termo expressa um estado de sentimento e representa um fenômeno da sensibilidade. A misericórdia é com freqüência compreendida como sinônimo de compaixão, mas nesse caso não é devidamente compreendida.

A misericórdia, considerada como um fenômeno da vontade, é uma disposição de perdoar crimes. Tal é a natureza da benevolência, que buscará o bem, mesmo daqueles que merecem o mal, quando é possível fazê-lo com sabedoria. É "pronta a perdoar" (SI 86.5), a buscar o bem do mau e do ingrato e a perdoar quando há arrependimento. A misericórdia, considerada como um sentimento ou fenômeno da sensibilidade, é um desejo de perdão e de bem para quem merece punição. E só um sentimento, um desejo: obviamente é involuntário, não possuindo, em si, qualquer caráter moral.

A misericórdia, é claro, manifestar-se-á em ação e no esforço para perdoar ou de buscar um perdão, a menos que o atributo da sabedoria o impeça. Pode ser pouco sábio perdoar ou buscar o perdão do culpado. Em tais casos, todos os atributos da benevolência devem necessariamente estar em harmonia; não se fará qualquer esforço para concretizar seu fim. Foi esse atributo da benevolência, modificado e limitado em seu exercício pela sabedoria e justiça, que se empenhou em prover os meios e abrir o caminho para o perdão de nossa raça culpada.

Uma vez que a sabedoria e a justiça são também atributos da benevolência, a misericórdia jamais pode manifestar-se em esforços para garantir seu fim, exceto de um modo que e desde que não anule a justiça e a sabedoria. Nenhum atributo da benevolência pode ser exercido à custa de outro ou em oposição a outro. Os atributos morais de Deus, conforme se disse, são apenas atributos da benevolência, pois a benevolência compreende e expressa todos eles. Pelo termo benevolência aprendemos que o fim para o qual ela caminha é bom. E também devemos inferir, pelo próprio termo, que os meios são inquestionáveis, porque é absurdo supor que o bem seja escolhido por ser bom e, mesmo assim, que a mente que faz tal escolha não deve hesitar em usar meios discutíveis e injuriosos para obter esse fim. Isso seria uma contradição, desejar o bem por si, ou em consideração a seu valor intrínseco, e depois escolher meios injuriosos para cumprir esse fim. Isso não é possível. A mente que se fixa no máximo bem-estar de Deus e do universo como um fim jamais pode consentir em usar, para a concretização desse fim, esforços considerados incoerentes com ele, ou seja, que tendam a impedir o máximo bem-estar do ser.

A misericórdia, conforme eu disse, é a disposição da benevolência em perdoar o culpado. Mas esse atributo não pode ser exercido, a menos que preencha as condições coerentes com os outros atributos da benevolência. A misericórdia como um mero sentimento perdoaria sem arrependimento ou condição; perdoaria sem referir-se à justiça pública. Mas quando a vemos em conjunto com os outros atributos da benevolência, aprendemos que, mesmo sendo um verdadeiro atributo da benevolência, ela não é nem pode ser exercida sem o cumprimento daquelas condições que garantem a anuência de todos os outros atributos da benevolência. Essa verdade é ensinada e ilustrada com muita beleza na doutrina e fato da expiação, conforme veremos. Aliás, sem considerar os vários atributos da benevolência, ficamos necessariamente em total escuridão e confusão a respeito do caráter e governo de Deus, o espírito e significado de sua lei, o espírito e significado do Evangelho, o estado espiritual de nós mesmos e os desenvolvimentos do caráter ao nosso redor. Sem um conhecimento dos atributos do amor ou benevolência, não há como não ficarmos perplexos -- encontrando aparentes discrepâncias na Bíblia e na administração divina -- e na manifestação do caráter cristão, tanto revelado na Bíblia como manifesto na vida cotidiana. Por exemplo: como os universalis-tas têm tropeçado por não considerarem essa questão! Deus é amor! Bem, sem considerar os atributos desse amor, inferem que se Deus é amor, não pode odiar o pecado e os pecadores. Se Ele é misericordioso, não pode punir pecadores no Inferno, etc. Os utilitaristas têm tropeçado de igual maneira. Deus é misericordioso; ou seja, dispõe-se a perdoar o pecado. Bem, então qual a necessidade de uma expiação? Se for misericordioso, pode perdoar, e perdoará, havendo arrependimento, sem expiação. Mas podemos indagar: se Ele é misericordioso, por que não perdoar sem arrependimento? Se apenas sua misericórdia deve ser levada em conta, ou seja, simplesmente uma disposição de perdoar, ela, por si, não esperaria um arrependimento. Mas se o arrependimento é e deve ser uma condição para o exercício da misericórdia, não é possível que haja, ou não é preciso que haja, outras condições para seu exercício? Se a sabedoria e a justiça pública são também atributos da benevolência e condicionam o exercício da misericórdia, impedindo que ela seja exercida, a menos que haja arrependimento, por que não podem, ou por que não devem, condicionar igualmente seu exercício uma satisfação tal da justiça pública que garanta respeito igualmente pleno e profundo à lei como ocorreria na execução de sua penalidade? Em outras palavras, se a sabedoria e a justiça são atributos da benevolência e condicionam o exercício da misericórdia ao arrependimento, por que não podem ou devem também condicionar seu exercício ao fato de uma expiação? Uma vez que a misericórdia é um atributo da benevolência, ela dirigirá, de maneira natural e inevitável, a atenção do intelecto para elaborar meios a fim de tornar o exercício da misericórdia coerente com os outros atributos da benevolência. Ela empregará a inteligência para elaborar meios a fim de garantir o arrependimento do pecado e remover todos os obstáculos do caminho para seu exercício livre e pleno. Ela também garantirá o estado de sentimento chamado misericórdia ou compaixão. Assim, é certo que a misericórdia garantirá esforços para buscar o arrependimento e perdão de pecadores. Garantirá um anseio profundo na sensibilidade por eles e ação

vigorosa para obter esse fim, ou seja, para obter o arrependimento e perdão deles. Esse atributo da benevolência levou o Pai a dar seu Filho Unigênito amado e levou o Filho a entregar-se à morte para obter o arrependimento e perdão de pecadores. E esse atributo da benevolência que leva o Espírito Santo a realizar esforços tão grandes e delongados para obter o arrependimento de pecadores. E também esse atributo que levou profetas, apóstolos, mártires e santos de todas as eras a buscar a conversão dos perdidos no pecado. É um atributo amável. Todos os seus sentimentos são doces, ternos e gentis como o Céu.

13. A justiça é um atributo da benevolência.

Esse termo também expressa um estado ou fenômeno da sensibilidade. Como um atributo da benevolência, é o oposto da misericórdia, quando vista em sua relação com o crime. Ela consiste numa disposição de tratar cada agente moral de acordo com seu mérito ou demérito intrínseco. Em sua relação com o crime, o criminoso e o público consiste numa tendência de punir de acordo com a lei. A misericórdia perdoaria -- a justiça puniria para o bem público.

A justiça, como um sentimento ou fenômeno da sensibilidade, é um sentimento de que os culpados merecem punição e um desejo de que eles sejam punidos. Isso é um sentimento involuntário, não possuindo caráter moral. Ela é muitas vezes fortemente instigada sendo, com freqüência, causa de revoltas e comoções populares. Quando ela assume o controle da vontade, como ocorre amiúde com pecadores, leva ao que é popularmente chamado linchamento e ao uso de métodos sumários tão aterradores para execução de vingança.

Eu disse que o mero desejo não possui caráter moral. Mas quando a vontade é governada por esse desejo e se presta a buscar sua satisfação, esse estado da vontade é egoísmo sob uma de suas formas mais odiosas e amedrontadoras. Sob a providência de Deus, porém, essa forma de egoísmo, como qualquer outra é, por sua vez, controlada para o bem, como os terremotos, tornados, pestes e guerra, para purificar os elementos morais da sociedade e expurgar aqueles flagelos morais que muitas vezes infestam as comunidades. Mesmo a guerra em si não passa, muitas vezes, de um exemplo e ilustração disso.

A justiça, como um atributo da benevolência, é virtude manifestando-se na execução das penalidades da lei e no apoio à ordem pública e de várias outras maneiras para o bem-estar da humanidade. Há várias modalidades desse atributo. Ou seja, ele pode e deve ser visto sob vários aspectos e em várias relações. Um deles é a justiça pública. Isso é uma consideração pelos interesses públicos, garantindo uma administração adequada da lei para o bem público. A justiça não permitirá de modo algum que a penalidade seja descartada, a menos que se faça algo para sustentar a autoridade da lei e do legislador. Ela também garante a devida administração de recompensas e cuida estritamente dos interesses públicos, sempre insistindo que o maior interesse deve prevalecer sobre o menor; que o interesse privado jamais desconsidere ou prejudique um interesse público de valor maior. A justiça pública é modificada em seu exercício pelo atributo da misericórdia. Ela condiciona o exercício da misericórdia e a misericórdia condiciona seu exercício. A misericórdia, para ser coerente com esse atributo, não pode estender um perdão, a menos que haja arrependimento e uma rendição equivalente ao governo. Assim também, por outro lado, a justiça é condicionada pela misericórdia e não pode, para ser coerente com esse atributo, passar a buscar vingança quando o máximo bem não a exige, quando a punição pode ser dispensada sem perda pública. Desse modo, um atributo limita o exercício do outro e juntos tornam todo o caráter da benevolência perfeito, simétrico e celestial.

A justiça é contada entre os atributos mais inflexíveis da benevolência; mas é indispensável para completar todo o círculo das perfeições morais. Ainda que severa e tremenda, e às vezes inexprimivelmente terrível em seu exercício, é, entretanto, uma das modalidades e manifestações mais gloriosas da benevolência. A benevolência sem justiça seria tudo, mas não moral, bela e perfeita. Também jamais poderia ser benevolência. Esse atributo da benevolência parece conspícua no caráter de Deus conforme revelado em sua Lei, seu Evangelho e, às vezes, conforme indicado de maneira mais impressionante em sua providência.

Ela é também conspícua na história de homens inspirados. Os Salmos abundam de expressões desse atributo. Encontramos muitas orações que pedem a punição dos ímpios. Samuel cortou Agague em pedaços; e os escritos de Davi abundam de expressões as quais mostram que esse atributo estava bem desenvolvido em sua mente; e as circunstâncias sob as quais ele foi colocado muitas vezes tornavam adequado expressar e manifestar de várias maneiras o espírito desse atributo. Muitos têm tropeçado nessas orações, expressões e manifestações conforme são aqui mencionadas. Mas isso é causado por falta de uma consideração adequada. Eles supõem que tais exibições não eram coerentes com o espírito correto. Ah, dizem eles, isso é muito pouco evangélico! Muito diferente de Cristo! Muito incoerente com o espírito doce e celestial de Cristo e do Evangelho! Mas tudo isso é um engano. Essas orações foram ditadas pelo Espírito de Cristo. Tais exibições são apenas manifestações de um dos atributos essenciais da benevolência. Aqueles pecadores merecem morrer. Era pelo máximo bem que deviam se tornar exemplo público. Disso sabia o Espírito de inspiração, e tais orações, sob tais circunstâncias, são apenas uma expressão da mente e vontade de Deus. São de fato o espírito de justiça pronunciando uma sentença contra eles. Essas orações e coisas semelhantes encontradas na Bíblia não são uma justificativa para o espírito de fanatismo e denúncia que com tanta freqüência tem encontrado abrigo sob eles, ainda que fanáticos possam queimar cidades e destruir países e procurar justificar-se apelando para a destruição do velho mundo pelo Dilúvio e a destruição das cidades da planície por fogo e enxofre.

A justiça retributiva é outra modalidade desse atributo. Ela consiste numa disposição de visitar o ofensor com aquela punição que ele merece, porque é adequado e próprio que um agente moral seja tratado de acordo com seus atos. Numa aula futura devo me alongar sobre essa modalidade de justiça.

Outra modalidade desse atributo é a justiça comercial. Ela consiste em desejar equivalentes exatos e retidão nos negócios e em todas as transações seculares. Há outras modalidades desse atributo, mas os precedentes devem ser suficientes para ilustrar os vários departamentos regidos por esse atributo.

Esse atributo, ainda que inflexível em seu espírito e manifestações, é de importância primordial em todos os governos exercidos por agentes morais, quer humanos, quer divinos. Aliás, sem ele não existiria governo. É vão para alguns filósofos pensar em desacreditar esse atributo e desconsiderá-lo por completo na administração do governo. Se tentarem realizar essa experiência descobrirão, para pesar e confusão deles mesmos, que nenhum atributo específico da benevolência pode dizer algo como "não tenho necessidade de vós" (1 Co 12.21). Em suma, destrua-se algum atributo da benevolência e destróem-se sua perfeição, sua beleza, sua harmonia, sua propriedade, sua glória. Destrói-se, de fato, a benevolência; ela deixa de ser benevolência, mas um sentimentalismo doentio, ineficiente e flácido, sem nenhum Deus, nenhuma virtude, nenhuma beleza, nenhuma forma, nenhuma graça inerente que nos faça desejá-la quando diante dela.

Esse atributo sustenta a lei e ainda a executa. Seu alvo é garantir a honestidade comercial. Seu alvo é garantir a integridade e tranqüilidade pública e privada. Ele diz à violência, desordem e injustiça: Paz, acalmai-vos, e é preciso que haja paz. Vemos a evidência e as ilustrações desse atributo nos relâmpagos do Sinai e na agonia do Calvário. E o ouvimos no gemido de um mundo quando as fontes do grande abismo foram rompidos e quando as janelas do céu foram abertas e desceu o Dilúvio, engolindo a população do globo. Vemos suas manifestações na torrente que desceu varrendo cidades da planície e, por fim, veremos para sempre suas manifestações brilhantes, mas tremendas e gloriosas, nas dobras escuras e espiraladas daquele pilar de fumaça da tormenta dos condenados que sobe diante de Deus para todo sempre.

Muitos parecem temer considerar a justiça um atributo da benevolência. Qualquer manifestação dela entre os homens faz com que recuem e estremeçam como se vissem um demônio. Mas que ela tome seu lugar no círculo glorioso dos atributos morais; é preciso que tome -- e tomará -- e não pode ser diferente. Sempre que se adota, na família ou um Estado, alguma política que exclua o exercício desse atributo, tudo necessariamente falha, é derrotado e se arruina.

Repito: A justiça, sendo um atributo da benevolência, evitará que a punição dos completamente impenitentes diminua a felicidade de Deus e dos seres santos. Estes jamais terão prazer na angústia por si; mas terão prazer na administração da justiça. Assim, quando a fumaça do tormento dos condenados for vista no Céu, gritarão, conforme são descritos: "Aleluia! Pois já o Senhor, Deus Todo-Poderoso, reina" (Ap 19.6); "Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei dos santos!" (Ap 15.3).

Antes de encerrar a consideração desse tópico, não posso deixar de insistir que onde existe a verdadeira benevolência, deve haver justiça comercial correta ou honestidade e integridade nos negócios. Isso é tão certo quanto a existência da benevolência. A administração de equivalentes exatos, ou a intenção de fazê-lo, deve ser uma característica da mente de fato benevolente. Pode existir uma benevolência impulsiva; ou seja, a benevolência frenológica ou constitutiva, assim chamada de maneira equivocada; pode existir em alguma medida, mas, mesmo assim, não existir justiça. A mente pode ser movida muitas vezes e com freqüência pelo impulso do sentimento, de modo que a pessoa pode às vezes ter a aparência de verdadeira benevolência, enquanto a mesma pessoa é egoísta nos negócios e quer levar vantagem em todas as suas relações comerciais. Isso é um assombro e um enigma para muitos, mas o caso é simples. A dificuldade é que o homem não é justo, ou seja, não é de fato benevolente. Sua benevolência é só uma espécie de egoísmo que se impõe. "Quem tem ouvidos ouça" (Ap 2.7). Sua benevolência resulta de sentimentos, não sendo benevolência verdadeira.

Repito: Havendo benevolência, a regra áurea com certeza será observada: "Tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós" (Mt 7.12). A justiça da benevolência não pode deixar de garantir a conformidade com essa regra. A benevolência é um estado mental justo. É desejar com justiça. Ela deve, então, por uma lei de necessidade, defender a conduta justa. Se o coração é justo, a vida deve ser também.

Esse atributo da benevolência deve proteger aquele que o possui contra toda espécie e grau de injustiça; ele não pode ser injusto para com a reputação de seu próximo, sua pessoa, sua propriedade, sua alma, seu corpo nem, aliás, ser injusto em algum aspecto para com os homens ou com Deus. Ela garante e deve garantir confissão e restituição em todos os casos de erros de que se tenha lembrança, desde que sejam praticáveis. Deve-se compreender com clareza que um homem benevolente ou verdadeiramente religioso não pode ser injusto. Ele pode, de fato, parecer injusto aos outros; mas não pode ser verdadeiramente religioso ou benevolente e, ao mesmo tempo, injusto. Caso pareça injusto em alguma circunstância, não o é nem pode ser de fato, se no momento seu estado mental for benevolente. Os atributos do egoísmo, conforme veremos em ocasião oportuna, são diametralmente opostos aos da benevolência. Os dois estados mentais são tão contrários quanto o Céu e o Inferno, não podendo coexistir na mesma mente, assim como algo não pode ser e, ao mesmo tempo, não ser. Eu disse que se um homem em verdadeiro exercício da benevolência parece injusto em algum aspecto, só o é na aparência, e não de fato. Observem que falo de alguém que esteja de fato num estado mental benevolente. Ele poderia errar, fazendo o que seria injusto, caso o visse de outro modo e tivesse outra intenção. A justiça e a injustiça dizem respeito à intenção. Nenhum ato visível em si pode ser junto ou injusto. Dizer que um homem, no exercício de uma intenção verdadeiramente benevolente, pode ao mesmo tempo ser injusto é o mesmo absurdo de dizer que ele pode intentar com justiça e injustiça ao mesmo tempo e em relação ao mesmo objeto; o que seria uma contradição. Deve-se ter em mente o tempo todo que a benevolência é idêntica a uma coisa, a saber, boa vontade, desejar o máximo bem-estar do ser por si e todo o bem de acordo com seu valor relativo. Por conseguinte, é impossível que a justiça não seja atributo de tal escolha. A justiça consiste em considerar e tratar ou, antes, em desejar tudo de acordo com sua natureza ou com seu valor e relações intrínsecos e relativos. Dizer, portanto, que a benevolência presente admite algum grau de injustiça presente é afirmar uma contradição palpável. Um homem justo é um homem santificado, é um homem perfeito, no sentido de que está, no presente, num estado de retidão.

14. A veracidade é outro atributo da benevolência.

A veracidade, como um atributo da benevolência, é aquela qualidade que se apega à verdade. No próprio ato de tornar-se benevolente, a mente abraça a verdade ou a realidade das coisas. Assim, a veracidade deve ser uma das qualidades da benevolência. Veracidade é veridicidade. É a conformidade da vontade com a realidade das coisas. A verdade em ação é a ação conformada com a natureza e relações das coisas. Veridicidade é uma disposição de conformar com a realidade das coisas. É disposição de acordo com a realidade das coisas. É desejar o fim certo pelo meio certo. É desejar o que seja intrinsecamente valioso como um fim, e o relativamente valioso como meio. Em suma, é desejar tudo de acordo com a realidade ou os fatos em questão.

A veracidade, portanto, deve ser um atributo da benevolência. Como todos os atributos, é apenas a benevolência vista de certa perspectiva ou em certa relação. Não se pode distingui-la da benevolência, pois não é distinta dela, mas apenas uma fase ou forma de benevolência. O universo é constituído de tal maneira que, se tudo for originado, conduzido e legado de acordo com sua natureza e relações, o resultado necessário é o máximo bem possível. A veracidade busca o bem como um fim e a verdade como o meio para atingir esse fim. Ela deseja o bem e deseja que este só seja alcançado por meio da verdade. Ela deseja a verdade como fim e a verdade como o meio. O fim é de fato valioso e escolhido por esse motivo. Os meios são a verdade, e a verdade é o único meio próprio ou possível.

A veracidade de coração gera, é claro, um estado de sensibilidade a que chamamos amor da verdade. É um sentimento de prazer que surge de modo espontâneo na sensibilidade daquele cujo coração é veraz ao contemplar a verdade; esse sentimento não é uma virtude; é, antes, uma parte do prêmio pela veracidade do coração.

A veracidade, como fenômeno da vontade, é também freqüente e devidamente chamado amor da verdade. Trata-se de desejar de acordo com a verdade objetiva. Isso é virtude e também um atributo da benevolência. A veracidade, como atributo da benevolência divina, é a condição de confiança em Deus como governante moral. As leis físicas e morais do universo revelam a veracidade de Deus, sendo exemplos e ilustrações disso. A falsidade, no sentido de mentira, é naturalmente considerada com desaprovação, repulsa e rejeição por um agente moral. A veracidade é de igual modo necessariamente considerada por ele com aprovação e, se a vontade for benevolente, com prazer. Necessariamente temos prazer em contemplar a verdade objetiva, conforme se coloca como idéia no campo da consciência. Também temos prazer na percepção e contemplação da veracidade, na compreensão concreta da idéia da verdade. A veracidade é moralmente bela. Temos prazer nela exatamente como temos prazer na beleza natural, por uma lei de necessidade, quando cumpridas as condições necessárias. Esse atributo da benevolência a defende de toda tentativa de promover o bem último do ser por meio da falsidade. A verdadeira benevolência não deseja, não pode, recorrer à falsidade como meio para promover o bem, assim como não pode contradizer-se ou negar-se. A inteligência afirma que o máximo bem último só pode ser atingido pela estrita adesão à verdade. A mente não se satisfaz com algo menos. Aliás, supor o contrário é supor uma contradição. E tão absurdo quando supor que o máximo bem pode ser obtido pela violação e descarte da natureza e relações das coisas. Uma vez que o intelecto afirma essa relação inalterável da verdade com o máximo bem último, a benevolência ou aquele atributo da benevolência a que denominamos veracidade ou amor da verdade não pode aceitar a falsidade, assim como não pode aceitar abandonar o máximo bem do ser como um fim. De modo que, todo recurso à falsidade, toda fraude piedosa, assim falsamente denominada, apresenta apenas um exemplo especioso, mas real, de egoísmo. Um agente moral não pode mentir por Deus; ou seja, não pode dizer uma falsidade pecaminosa, pensando e intentando com isso agradar a Deus. Ele sabe, por intuição, que Deus não pode agradar-se ou ser verdadeiramente servido por um recurso à mentira. Há uma grande diferença entre ocultar ou esconder uma verdade por propósitos benevolentes e dizer uma falsidade consciente. Um homem inocente perseguido e caçado abriga-se sob meu teto, fugindo de alguém que lhe deseja derramar o sangue. Seu perseguidor vem e pergunta por ele. Não tenho obrigação de lhe declarar o fato de que ele está em minha casa. Posso, aliás, devo, ocultar-lhe a verdade nesse caso, pois o infeliz não tem o direito de sabê-lo. O bem maior e público exige que ele não o saiba. Ele só o deseja saber por motivos egoístas e sangüinários. Mas nesse caso não devo sentir ou julgar-me como se fosse livre para pronunciar uma falsidade consciente. Eu não poderia pensar que isso por fim conduziria ao máximo bem. A pessoa pode seguir enganada ou com a impressão de que sua vítima não se encontra ali. Mas não pode me acusar de mentir. Ele pode chegar a essa conclusão por eu me recusar a lhe dar essa informação. Mas mesmo para garantir a própria vida ou a vida de meu amigo, não sou livre para mentir. Se disserem que mentir implica dizer uma falsidade por propósitos egoístas e que, por conseguinte, não é mentira dizer uma falsidade por propósitos benevolentes, replico que nossa natureza é tal, que não podemos declarar uma falsidade com intenção benevolente, assim como não podemos cometer um pecado com intenção benevolente. Consideramos a falsidade necessariamente incoerente com o máximo bem do ser, assim como consideramos o pecado incoerente com a condição indispensável para o máximo bem do ser. A correlação entre a vontade e o intelecto impede o engano de que a falsidade consciente seja ou possa ser meio ou condição do máximo bem. A veracidade universal, portanto, sempre caracterizará um homem verdadeiramente benevolente. Enquanto for verdadeiramente benevolente, ele será necessariamente fidedigno, veraz. No âmbito de seu conhecimento, pode-se depender de suas declarações com tanta segurança quanto de declarações de um anjo. A veracidade é necessariamente um atributo da benevolência em todos os seres. Nenhum mentiroso possui ou pode possuir nele mesmo alguma partícula de verdadeira virtude ou benevolência.

15. A paciência é outro atributo da benevolência.

Esse termo é com freqüência usado para expressar um fenômeno da sensibilidade. Quando assim empregado, designa um estado calmo e sereno da sensibilidade ou de sentimentos, sob circunstâncias que costumam suscitar ira ou impaciência de sentimento. A calma da sensibilidade ou paciência como um fenômeno da sensibilidade é um estado puramente involuntário da mente e, ainda que seja manifestação agradável e amável, ainda não é virtude propriamente dita. Pode ser, como ocorre com freqüência, um efeito da paciência como um fenômeno da vontade e, assim, um efeito da virtude. Mas em si não é virtude. Esse temperamento amigável pode proceder e muitas vezes procede do temperamento inato ou de circunstâncias e hábitos.

A paciência como virtude deve ser um estado voluntário da mente. Deve ser um atributo do amor ou benevolência; pois toda virtude, conforme vimos e conforme ensina a Bíblia, resume-se em amor ou benevolência. O termo grego, upomone, muitas vezes traduzido por paciência no Novo Testamento, significa perseverança sob provações, persistência, resistência sob aflição ou privações, firmeza de propósito apesar dos obstáculos. A palavra pode ser usada em sentido positivo ou negativo. Assim, um homem egoísta pode perseguir seu objetivo com paciência ou perseverança e pode suportar grande oposição em seu curso. Isso é paciência como um atributo do egoísmo e paciência no sentido negativo do termo. A paciência no sentido positivo ou no sentido em que o considero é um atributo da benevolência. E a qualidade de -- constância, uma determinação, uma resistência sob provações, aflições, cruzes, perseguições ou desânimo. Ela deve ser um atributo da benevolência. Sempre que a paciência cessa, quando ela não se mantém, quando o desânimo prevalece e a vontade desiste de seu fim, cessa a benevolência, como conseqüência natural.

A paciência é um fenômeno da vontade, tende para a paciência como um fenômeno da sensibilidade. Ou seja, a qualidade de determinação e perseverança na intenção tende naturalmente a abafar e aquietar a impaciência de temperamento. Mas como os estados da sensibilidade não estão sob controle direto da vontade, pode haver sentimentos de irritação ou impaciência, mesmo quando o coração se mantém perseverante. Pode ocorrer de fatos ou falsidades serem sugeridos à mente, produzindo, à revelia da mente, uma perturbação da sensibilidade, mesmo que o coração permaneça paciente. A única maneira pela qual uma tentação, pois é somente uma tentação enquanto a vontade permanecer firme em seu propósito, digo que a única maneira pela qual uma tentação desse tipo pode ser desfeita, é pelo desvio da atenção daquela perspectiva do objeto que cria o distúrbio na sensibilidade. Eu devia ter dito antes que, embora a vontade controle os sentimentos por uma lei de necessidade, uma vez que não o faz de modo direto, mas indireto, pode ocorrer e ocorre com freqüência de os sentimentos correspondentes ao estado da vontade não existirem na sensibilidade. Além disso, por um momento, pode existir um estado da sensibilidade que seja oposto ao estado da vontade. Dessa fonte brotam muitas, aliás, a maioria, de nossas tentações. Jamais seríamos propriamente provados ou tentados se os sentimentos devessem sempre, por uma lei de necessidade, corresponder ao estado da vontade. O pecado consiste em desejar a gratificação de nossos sentimentos ou impulsos inatos, em oposição à lei de nossa razão. Mas se esses desejos e impulsos jamais pudessem existir em oposição à lei da razão e, por conseguinte, em oposição a uma escolha santa presente, então um ser santo não poderia ser tentado. Ele não teria motivo ou ocasião alguma para pecar. Se nossa mãe, Eva, não pudesse ter sentimentos de desejo em oposição ao estado de sua vontade, jamais poderia ter desejado o fruto proibido e, é claro, não teria pecado. Desejo agora declarar especificamente o que devia ter dito antes: que o estado ou escolha da vontade não controla necessariamente os sentimentos, desejos ou emoções com firmeza tal que jamais possam ser fortemente perturbados por Satanás ou por circunstâncias, em oposição à vontade, tornando-se com isso tentações potentes no sentido de buscar a gratificação deles em lugar de buscar o máximo bem do ser. Os sentimentos, a gratificação dos quais seria oposta a todo atributo da benevolência, podem às vezes coexistir com a benevolência, sendo uma tentação ao egoísmo; mas atos que se opõem à vontade não podem coexistir com a benevolência. Tudo o que se pode afirmar com certeza é que uma vez que a vontade possui o controle indireto dos sentimentos, desejos, apetites, paixões, etc, ela pode suprimir qualquer classe de sentimentos quando brotam, desviando a atenção de sua causa ou levando em consideração as perspectivas e os fatos que tranqüilizem ou mudem o estado da sensibilidade. Sentimentos de irritação ou o que se costuma chamar de impaciência, podem ser diretamente causados por saúde precária, nervos irritáveis e muitas outras coisas sobre as quais a vontade não possui controle direto. Mas isso não é impaciência no sentido de pecado. Se não se permite que esses sentimentos influenciem a vontade; se a vontade permanece paciente; se tais sentimentos não são acalentados e não se permite que abalem a integridade da vontade; não são pecado. Ou seja, a vontade não concorda com eles, pelo contrário. São apenas tentações. Se lhes é permitido controlar a vontade, irromperem em palavras e atos, então há pecado; mas o pecado não consiste nos sentimentos, mas no consentimento da vontade em gratificá-los. Assim, o apóstolo diz: "Irai-vos e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira" (Ef 4.26). Ou seja, se a ira surge nos sentimentos e sensibilidade, não pequem permitindo que ela controle sua vontade. Não acolham o sentimento e não permitam que o sol se ponha sobre ela. Pois esse acolhimento é pecado. Quando a acolhe, a vontade consente e incuba sua causa; isso é pecado. Mas se não for acolhida, não é pecado.

Que as ações externas correspondem aos estados e atos da vontade, desde que nenhum obstáculo físico se oponha a elas, é uma verdade universal. Mas que os sentimentos e desejos não podem existir contra os estados ou decisões da vontade, não é verdade. Se isso fosse uma verdade universal, a tentação, conforme eu disse, não poderia existir. As ações externas serão, sempre, conforme a vontade; os sentimentos em geral. Os sentimentos que correspondem à escolha da vontade serão a regra, e os sentimentos opostos, a exceção. Mas essas exceções podem existir e existem em seres perfeitamente santos. Existiram em Eva antes que ela desse lugar ao pecado e, se tivesse resistido, não teria pecado. Sem dúvida existiram em Cristo, ou não teria sido tentado em todos os pontos como nós. Se não há desejos ou impulsos da sensibilidade contrários ao estado da vontade, não existe uma tentação propriamente dita. O desejo ou impulso deve aparecer no campo da consciência, antes de ser motivo de ação, e, evidentemente, antes de ser uma tentação à indulgência consigo mesmo. Tão certo, pois, como um ser santo pode ser tentado e não pecar, também é certo que as emoções de qualquer tipo ou qualquer intensidade podem existir na sensibilidade, sem que haja pecado. Se não são aceitos, se a vontade não consente com eles e em indulgenciá-los ou gratificá-los, a alma não é menos virtuosa por estarem presentes. A paciência como um fenômeno da vontade deve firmar-se e cingir-se sob tais circunstâncias, para que a paciência da vontade possa existir e, se existir, deve existir na proporção exata da impaciência da sensibilidade. Quanto maior a impaciência da sensibilidade, tanto maior deve ser a paciência da vontade, caso contrário a virtude cessará por completo. De modo que nem sempre é verdade que a virtude seja mais intensa quando a sensibilidade está mais calma, plácida e paciente. Quando Cristo experimentou seus maiores conflitos, sua virtude como homem era indubitavelmente mais intensa. Quando angustiado no jardim, tamanha era a aflição de sua sensibilidade, que seu suor era como grandes gotas de sangue. Essa, ele afirma, era a hora do príncipe das trevas. Essa era sua maior provação. Mas Ele pecou? Não, absolutamente. Mas por quê? Estava calmo e tranqüilo como numa tarde de verão? Muito pelo contrário.

A paciência, portanto, como atributo da benevolência, consiste, não em sensação de placidez, mas em perseverança sob provações e estados da sensibilidade que tendem ao egoísmo. Isso é só benevolência vista por certo ângulo. É benevolência sob circunstâncias desalentadoras de provação ou tentação. "Aqui está a paciência dos santos" (Ap 13.10).

Antes de desconsiderar a questão da paciência como uma emoção, devo observar que a firmeza do coração tanto tende a assegurar a paciência que, se um estado oposto da sensibilidade dura mais que um momento, há uma forte pressuposição de que o coração não se firme no amor. Seus primeiros impulsos produzirão um esforço imediato de suprimi-lo. Se continuarem, isso evidencia que se permitiu que a atenção permanecesse em sua causa. Isso mostra que a vontade está de algum modo sendo indulgente com eles.

Se sua influência é tanta que se manifesta em palavras e atos impacientes, deve haver uma admissão da vontade. A paciência, como um atributo da benevolência, foi vencida. Se a sensibilidade estivesse sob controle perfeito e direto da vontade, o menor grau de impaciência implicaria pecado. Mas como está sob controle indireto, e não direto, da vontade, a impaciência momentânea do sentimento, quando não tem influência alguma sobre a vontade e quando não se faz qualquer concessão a ela, não é evidência segura de um estado pecaminoso da vontade. Deve-se ter sempre em mente que nem a paciência nem a impaciência, na forma de mera sensação, qualquer que seja sua duração ou grau, são em si santas ou pecaminosas. Tudo o que se pode dizer desses estados da sensibilidade é que indicam, como algo geral, a atitude da vontade. Quando a vontade se firma por longo tempo na paciência, o resultado é grande equanimidade de temperamento e grande paciência de sentimento. Isso vem a ser uma lei da sensibilidade, de maneira que santos muito desenvolvidos podem experimentar e sem dúvida experimentam a mais completa paciência de sentimento por muitos anos seguidos. Isso não constitui a santidade deles, mas é um doce fruto dela. Deve ser considerada mais à luz de um prêmio da santidade que como santidade em si.

16. Outro atributo da benevolência é a mansidão.

A mansidão, considerada como virtude, é um fenômeno da vontade. Esse termo também expressa um estado da sensibilidade. Quando empregada para designar um fenômeno da sensibilidade, é quase sinônima de paciência. Ela designa um temperamento dócil e controlado sob provocação. A mansidão, como um fenômeno da vontade e como um atributo da benevolência, é o oposto da resistência à injúria e também da retaliação. É, de modo mais estrito e próprio, paciência sob tratamento injurioso. Com certeza esse é um atributo de Deus, conforme demonstram claramente a nossa existência e o fato de não estarmos no Inferno. Cristo disse a respeito dele mesmo: "sou manso e humilde de coração" (Mt 11.29), e isso decerto não era vangloria. De que forma admirável e incessante manifestou-se esse atributo de seu amor? O qüinquagésimo terceiro capítulo de Isaías é uma profecia que expõe esse atributo sob luz mais tocante. Aliás, é difícil que algum aspecto do caráter de Deus e de Cristo seja manifesto de maneira mais contundente que essa. Evidentemente, esse deve ser um atributo da benevolência. A benevolência é a boa vontade para com todos os seres. Somos naturalmente pacientes com aqueles cujo bem buscamos de maneira honesta e diligente. Se nosso coração está decidido a lhes fazer bem, naturalmente exerceremos paciência para com eles. Deus confiou a nós, de modo grandioso, sua paciência no fato de, quando éramos ainda seus inimigos, abster-se de nos punir e nos dar seu Filho para morrer por nós. A paciência é um atributo doce e amável. Como é tocante a maneira pela qual ele a manifestou no tribunal de Pilatos e sobre a cruz. "Foi levado ao matadouro e, como a ovelha muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a boca" (Is 53.7).

Esse atributo possui, neste mundo, abundante oportunidade de desenvolver e manifestar-se nos santos. São ocasiões diárias para o exercício dessa forma de virtude. Aliás, todos os atributos da benevolência são chamados com freqüência ao exercício nesta escola de disciplina. De fato, este é um mundo adequado em que treina os filhos de Deus para desenvolver e fortalecer toda modalidade de santidade. Esse atributo deve sempre aparecer onde existir a benevolência e sempre que houver ocasião para seu exercício.

Há muito prazer em contemplar a perfeição e glória daquele amor que se constitui obediência à lei de Deus. Em algumas ocasiões, a vislumbramos desenvolvendo um atributo após outro, e pode haver muitos de seus atributos e modalidades dos quais ainda não temos idéia alguma. As circunstâncias farão com que sejam exercidas. É provável, se não certo, que os atributos da benevolência fossem conhecidos de modo muito imperfeito no céu, antes da existência do pecado no universo e que, não fosse o pecado, muitos desses atributos jamais teriam sido manifestados em exercício. Mas a existência do pecado, tamanho o mal, dá oportunidade para que a benevolência manifeste suas lindas fases e desenvolva seus ternos atributos da maneira mais encantadora. Assim, a administração divina da benevolência faz o bem brotar de mal tão grande.

O temperamento impetuoso e impaciente sempre manifesta indícios de falta de benevolência ou de verdadeira religião. A mansidão é e deve ser característica peculiar dos santos neste mundo em que existe tanta provocação. Cristo reforçou com freqüência e vigor a obrigação de ser paciente. "Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo e tirar-te a vestimenta, larga-lhe também a capa; e, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas" (Mt 5.39-41). Como é lindo!

17. A humildade é outra modalidade ou atributo do amor.

Esse termo parece com freqüência empregado para expressar um senso de indignidade, de culpa, de ignorância e de nulidade, para expressar um sentimento de desmerecimento. Parece ser usado na linguagem comum para expressar às vezes um estado da inteligência, quando parece indicar uma percepção clara de nossa culpa. Quando empregado para designar um estado da sensibilidade, representa aqueles sentimentos de vergonha e indignidade, de ignorância e de nulidade de que têm consciência mais profunda aqueles que foram iluminados pelo Espírito Santo com respeito ao verdadeiro caráter deles mesmos.

Mas como um fenômeno da vontade e como um atributo do amor, consiste numa disposição de ser conhecido e apreciado de acordo com nosso caráter real. A humildade, como fenômeno da sensibilidade e da inteligência pode coexistir com um grande orgulho sincero. O orgulho é uma disposição de exaltar a nós mesmos, colocar-nos acima dos outros, esconder os próprios defeitos e parecer mais do que somos. Uma profunda convicção de pecado e profundos sentimentos de vergonha, de ignorância e de merecimento do Inferno podem coexistir com uma grande falta de disposição de confessar exatamente o que somos e assim sermos conhecidos e sermos apreciados de acordo com o que nosso verdadeiro caráter foi e é. Não existe virtude em tal humildade. Mas a humildade considerada virtude consiste em a vontade dis-por-se a ser conhecida, confessar e assumir nosso devido lugar na escala da existência. Essa é aquela peculiaridade do amor que deseja o bem do ser de maneira tão desinteressada, que não deseja passar por mais do que realmente somos. Esse é um aspecto honesto, doce a gentil do amor. Talvez deva ser peculiar àqueles que pecaram. Trata-se apenas de amor atuante sob ou em certa relação ou em referência a um conjunto específico de circunstâncias. Ela deveria, sob as mesmas circunstâncias, desenvolver-se e manifestar-se em todas as mentes de fato benevolentes. Esse atributo fará com que a confissão a Deus e aos homens seja natural e até um prazer. É fácil ver que, a não ser por esse atributo, os santos não poderiam ser felizes no céu. Deus prometeu levar a julgamento toda obra e todo segredo, quer sejam bons, quer sejam maus. Ora, uma vez que existe o orgulho, seria por demais penoso para a alma ter conhecido todo o caráter, de modo que, a menos que esse atributo realmente esteja presente nos santos, estes ficarão envergonhados no julgamento, muito perturbados, mesmo no céu. Mas esse doce atributo os guardará contra a vergonha e perturbação diante daquilo que, de outro modo, transformaria o próprio céu em Inferno para eles. Estarão perfeitamente desejosos e felizes de serem conhecidos e avaliados de acordo com o caráter. Esse atributo garantirá em todos os santos sobre a terra aquela confissão mútua de faltas tanto recomendada na Bíblia. Com isso não se quer dizer que os cristãos sempre considerem sábio e necessário fazer confissão de todos os pecados secretos aos homens. Mas quer dizer que eles confessarão àqueles a quem injuriaram e a todos cuja benevolência exija que confessem. Esse atributo protege seu possuidor contra o orgulho espiritual, contra a ambição de colocar-se acima dos outros. Trata-se de um estado mental modesto e despretensioso.

18. A abnegação é outro atributo do amor.

Se amamos algum ser mais que a nós mesmos, obviamente nos negamos quando nossos interesses competem com os dele. Amor é boa vontade. Se desejo o bem para os outros mais do que a mim mesmo, é absurdo dizer que não deva negar-me quando minhas inclinações entram em conflito com o bem deles. Ora, vimos repetidas vezes que o amor requerido pela lei de Deus é boa vontade ou desejar o máximo bem por si como um fim. Uma vez que os interesses próprios não são considerados, de modo algum, pelo fato de pertencerem a nós mesmos, mas só de acordo com seu valor relativo, deve-se considerar certo que a abnegação por causa da promoção dos máximos interesses de Deus e do universo é e deve ser uma peculiaridade ou atributo do amor.

Mas repito: a própria idéia de benevolência desinteressada, e não há outra benevolência verdadeira, implica o abandono do espírito de satisfação pessoal ou de egoísmo. É impossível tornar-se benevolente sem deixar de ser egoísta. Em outras palavras, a abnegação perfeita está implícita no início da benevolência. A indulgência consigo mesmo cessa onde começa a benevolência. E preciso que assim seja. A benevolência é a consagração de nossas capacidades para o máximo bem do ser em geral como um fim. Isso é totalmente incongruente com a consagração ao interesse próprio ou gratificação própria. O egoísmo faz do bem próprio o fim de toda escolha. A benevolência faz do bem do ser em geral o fim de toda escolha. A benevolência, portanto, implica abnegação completa. Ou seja, implica que nada é escolhido só por pertencer a si mesmo, mas apenas por seu valor relativo e em proporção a ele.

Eu disse que não há verdadeira benevolência, senão a benevolência desinteressada; nenhum amor verdadeiro, senão o amor desinteressado. Existe uma coisa chamada amor ou benevolência interesseira. Ou seja, o bem dos outros é desejado, não como um fim ou pelo valor intrínseco para eles, mas como um meio para obtermos nossa felicidade ou por causa de seu valor relativo para nós. Assim, a pessoa pode desejar o bem da própria família, ou de vizinhos, ou do país, ou de alguém, ou de algo que mantenha com ela mesma relações tais que impliquem interesses próprios. Quando a razão última para desejar o bem dos outros é a promoção do bem próprio, isso é egoísmo. É fazer do bem próprio o fim. Um pecador pode fazê-lo em relação a Deus, em relação à igreja e em relação aos interesses religiosos em geral. E a isso que chamo benevolência interesseira. É desejar o bem como um fim apenas próprio, e a todos os outros só como um meio para promover o bem próprio.

Mas repito: quando a vontade é governada pelo simples sentimento ao desejar o bem dos outros, isso é só o espírito de indulgência pessoal e não passa de benevolência interesseira. Por exemplo: o sentimento de compaixão é fortemente agitado pela presença do sofrimento. O sentimento é intenso, constituindo-se, como todos os sentimentos, num poderoso impulso ou motivo para a vontade desejar sua satisfação. Naquele momento, o impulso é mais forte que o sentimento de avareza ou qualquer outro sentimento. Eu cedo a ele e dou todo o dinheiro que tenho para aliviar o sofredor. Chego a despir a roupa e a dou a ele. Ora, nesse caso, sou tão egoísta quanto seria se tivesse vendido minhas roupas para gratificar meu apetite por bebida alcoólica. A satisfação dos meus sentimentos era meu fim. Essa é uma das formas mais sutis e enganosas de egoísmo.

De novo: quando alguém faz da própria salvação o alvo da oração, da esmola e de todos os seus deveres religiosos, isso é só egoísmo, não verdadeira religião, por mais pródigo que seja nisso. Isso é só benevolência interesseira ou benevolência para consigo mesmo.

De novo: pela própria natureza da verdadeira benevolência, é impossível que todos os interesses não sejam considerados de acordo com seu valor relativo. Quando considero outro interesse mais valioso em si ou mais valioso para Deus e para o universo que o meu, e quando vejo que, negando a mim mesmo, posso promovê-lo, é certo que, se eu for benevolente, o farei. Não posso deixar de fazê-lo, para não deixar de ser benevolente. A benevolência é uma consagração honesta e desinteressada de todo o ser para o máximo bem de Deus e do universo. O homem benevolente, portanto, pesa e deve pesar honestamente cada interesse, conforme o percebe, na balança de seu melhor julgamento, dando sempre preferência ao interesse máximo, desde que creia que possa empreendê-lo e, pela abnegação, obtê-lo.

Que a abnegação é um atributo do amor divino é manifesto de maneira gloriosa e tocante na dádiva divina de seu Filho para morrer pelos homens. Esse atributo também foi manifestado de modo muito conspícuo por Cristo, ao negar-se e tomar a cruz e sofrer por seus inimigos. Observem que não foi por amigos que Cristo se deu. Não foi por sofredores infelizes ou inocentes que Deus deu seu Filho ou deu-se a si mesmo. Foi por inimigos. Não foi para que pudesse transformá-los em escravos que deu seu Filho, nem por alguma consideração egoísta aliança, mas porque prenunciou que, fazendo ele próprio esse sacrifício, poderia obter, para o universo, bem maior do que sacrificaria. Foi esse atributo da benevolência que o fez dar seu Filho para sofrer tanto. Foi só a benevolência desinteressada que o levou a negar-se por um bem maior para o universo. Ora, observem que esse sacrifício não teria sido feito, a menos que Deus o considerasse o menor dentre dois males naturais. Ou seja, os sofrimentos de Cristo, por maiores e mais terríveis que tenham sido, foram considerados um mal de menor magnitude que os sofrimentos eternos dos pecadores. Isso o induziu a fazer o sacrifício, ainda que por inimigos. Não importava se por amigos ou se por inimigos, caso assim pudesse, por um sacrifício menor, obter o bem maior para eles.

Deve-se compreender que um espírito complacente consigo mesmo jamais é nem pode ser coerente com a benevolência. Nenhuma forma de complacência pessoal, assim devidamente designada, pode existir onde quer que exista a verdadeira benevolência. O fato é que a abnegação deve estar presente e está universalmente presente sempre que reina a benevolência. Cristo pronunciou expressamente a abnegação sincera como condição do discipulado; o que eqüivale a afirmar que se trata de um atributo essencial da santidade ou amor; que, sem ela, não pode haver um início de verdadeira virtude.

De novo: muito do que passa por abnegação é só uma forma enganosa de indulgência própria. Quanto às penitências e mortificações, conforme falsamente chamados, dos supersticiosos, que seriam, afinal, se não espírito de indulgência própria? O sacerdote papista abstém-se do casamento para obter honra, emolumentos e a influência do ofício sacerdotal aqui e a glória eterna depois. A freira toma o véu e o monge confina-se no mosteiro; o eremita abandona a sociedade humana e se fecha numa caverna; o devoto faz uma peregrinação a Meca e o mártir segue para a estaca. Ora, se essas coisas são feitas com referência última à própria glória e felicidade, ainda que casos aparentes de grande abnegação, são, na realidade, só um espírito de indulgência e satisfação própria. Eles só seguem o desejo mais forte de bem para si mesmos.

Há muitos enganos a esse respeito. Por exemplo, é comum as pessoas negarem-se num aspecto para gratificarem-se em outro. Numa pessoa, a avareza é uma paixão dominante. Ela trabalhará duro, levantar-se-á cedo e dormirá tarde, comerá com frugalidade e negará a si mesmo até o que lhe seja necessário para viver, a fim de acumular riquezas. Todos podem ver que isso é abnegação num aspecto, apenas para gratificação de si mesmo em outro. Ainda assim, essa pessoa reclamará amargamente do espírito de indulgência consigo mesmo manifestado pelos outros, da extravagância e da falta de piedade deles. Uma pessoa pode negar todos seus apetites e paixões físicas para obter boa reputação entre os homens. Isso também é um exemplo do mesmo tipo. Outra daria o fruto de seu corpo para pecado da alma -- sacrificaria tudo o mais para obter uma herança eterna, sendo tão egoísta quanto a que sacrifica pelas coisas presentes, sua alma e todas as riquezas da eternidade.

Mas é preciso salientar que esse atributo da benevolência garante e deve garantir a subjugação de todas as propensões. E preciso que, repentina ou gradualmente, desde que sejam subjugadas e aquietadas, cessem seus clamores imperiosos. E como se fossem mortas, repentina ou gradualmente, de modo que a sensibilidade venha a se tornar, em grande medida, morta para esses objetos que com tamanha freqüência e facilidade a incitavam. É uma lei da sensibilidade -- de todos os desejos e paixões, que a indulgência para com eles os desenvolve e fortalece, enquanto a negação os suprime. A benevolência consiste numa recusa em satisfazer a sensibilidade e em obedecer à razão. Assim, deve ser verdade que essa negação das propensões os suprimirá em grande parte; enquanto a indulgência do intelecto e da consciência os desenvolverá muito. Por conseguinte, o egoísmo tende a estultificar, enquanto a benevolência tende a fortalecer grandemente o intelecto.

19. A condescendência é outro atributo do amor.

Esse atributo consiste numa tendência de descer ao pobre, ignorante ou vil, com o propósito de lhes garantir o bem. É uma tendência de buscar o bem daqueles a quem a Providência colocou abaixo de nós em algum aspecto, rebaixando-nos, descendo a eles com esse propósito. E uma forma peculiar de abnegação. Deus Pai, Filho e Espírito Santo manifestam a condescendência infinita no esforço de obter o bem-estar dos pecadores, mesmo dos mais vis e degradados. Esse atributo é evocado pela humildade de coração de Cristo. Diz-se que Deus se humilha, ou seja, condescende, quando contempla o que é feito no céu. Isso é verdade, pois toda criatura é e precisa ser, para sempre, infinitamente inferior a ele em todos os sentidos. Mas quanto maior deve ser tal condescendência que desce à terra, mesmo para os mais inferiores e degradados habitantes da terra, com propósitos benevolentes! Trata-se de uma linda modalidade da benevolência. Ela parece inteiramente acima das concepções grosseiras de infidelidade. Parece que a maior parte das pessoas, especialmente os incrédulos, considera a condescendência mais uma fraqueza que uma virtude. Os cépticos vestem seu Deus imaginário com atributos em muitos aspectos contrários ao da verdadeira virtude. Eles consideram de todo aquém da dignidade divina descer, mesmo para observar, quanto mais para interferir nos interesses dos homens. Mas ouçam a palavra do Senhor: "Porque assim diz o Alto e o Sublime, que habita na eternidade e cujo nome é Santo: Em um alto e santo lugar habito e também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos e para vivificar o coração dos contritos" (Is 57.15). E de novo: "Assim diz o SENHOR: O céu é o meu trono, e a terra, o escabelo dos meus pés. Que casa me edificaríeis vós? E que lugar seria o do meu descanso? Porque a minha mão fez todas estas coisas, e todas estas coisas foram feitas, diz o SENHOR; mas eis para quem olharei: para o pobre e abatido de espírito e que treme diante da minha palavra" (Is 66.1-2). Assim, a Bíblia apresenta Deus revestido de condescendência como manto.

Esse é um atributo manifesto da benevolência e da verdadeira grandeza. As perfeições naturais de Deus parecem ainda mais maravilhosas quando consideramos que ele pode conhecer, contemplar e controlar, e de fato controla não só o maior, mas também o menor de todas as suas criaturas; que ele é tão capaz de atentar para cada necessidade e cada criatura, como se cada um fosse o único objeto de sua atenção. Assim, seus atributos morais parecem ainda mais lindos e atraentes quando consideramos que "as suas misericórdias são sobre todas as suas obras" (Sl 145.9), que "nenhum deles [dos passarinhos] cairá em terra sem a vontade de vosso Pai" (Mt 10.29), que ele se digna a contar todos os cabelos da cabeça de seus servos e que nenhum deles pode cair sem ele. Quando consideramos que nenhuma criatura é muito inferior, muito suja ou muito degradada para ser por ele desconsiderada, isso coloca seu caráter sob a mais encantadora das luzes. A benevolência é boa vontade para com todos os seres. Evidentemente, uma de suas características deve ser condescendência para com os que estão abaixo de nós. Isso em Deus é manifestamente infinito. Ele está infinitamente acima de todas as criaturas. Para ele, manter comunhão com elas é condescendência infinita.

Esse é um atributo que diz respeito essencialmente à benevolência ou amor em todos os seres benevolentes. Nos mais inferiores dos seres morais, talvez não haja outro desenvolvimento, senão em suas relações com existências sensíveis abaixo da ordem dos agentes morais, porque não há agentes morais abaixo deles a quem possam condescender. h condescendência de Deus inclina-se a todas as classes de existências sensíveis. Isso também diz respeito a toda alma benevolente, bem como a todos os inferiores. Ela busca o bem do ser em geral e jamais considera algum ser inferior demais para ter seus interesses atendidos e cuidados, de acordo com seu valor relativo. Não é possível a benevolência manter sua natureza essencial e, ainda assim, estar acima de qualquer grau de condescendência que possa concretizar o máximo bem. A benevolência não conhece nem pode conhecer, um mínimo que seja, daquela altivez de espírito que considere muito degradante rebaixar-se em algum ponto ou diante de algum ser cujos interesses precisem e possam ser promovidos por tal condescendência. A benevolência tem seu fim e não pode deixar de buscá-lo e não pensa nem pode pensar em algo inferior ao que é exigido para a obtenção desse fim. Ah, a vergonha, a infinita insensatez e loucura do orgulho e de toda forma de egoísmo! Como Deus está infinitamente distante disso! Cristo pôde condescender em nascer numa manjedoura; em ser criado numa vida humilde; em ser mais pobre que as raposas do deserto ou as corujas do céu; em se associar a pescadores; em se misturar com todas as classes e buscar o bem delas; em ser desprezado na vida e em morrer entre dois ladrões sobre a cruz. Sua benevolência "suportou a cruz, desprezando a afronta" (Hb 12.2). Ele era "manso e humilde de coração" (Mt 11.29). O Senhor do céu e da terra é tão humilde de coração em relação a qualquer de suas criaturas, quanto está acima delas em sua infinitude. Ele pode condescender em tudo, exceto em cometer pecado. Ele pode rebaixar-se infinitamente.

20. A estabilidade é outro atributo da benevolência.

Esse amor não é um mero sentimento ou emoção que ferve por um momento e depois esfria e desaparece. Mas é escolha, não uma mera volição que atinge seu alvo e depois descansa. É a escolha de um fim, um fim supremo. É uma escolha inteligente -- a escolha mais inteligente possível. É uma escolha cuidadosa -- nada é mais cuidadoso; uma escolha deliberada, uma escolha razoável que sempre merecerá aprovação das percepções e intuições mais elevadas do intelecto. Ela é inteligente e imparcial e uma consagração universal a um fim acima de todos os outros, a mais importante e cativante em sua influência. Ora, a estabilidade deve ser uma característica de uma escolha como essa. Por estabilidade não se entende que a escolha não possa ser mudada, nem que jamais seja mudada; mas que quando os atributos da escolha são considerados, parece que a estabilidade, como o oposto a instabilidade, deve ser um atributo dessa escolha. É um novo nascimento, uma nova natureza, uma nova criatura, um novo coração, uma nova vida. Essas e outras semelhantes são as representações da Escritura. Seriam representações de um estado evanescente? O início da benevolência na alma -- essa escolha é representada como a morte do pecado, como um sepultamento, ser plantado, uma crucificação do velho homem e muitas figuras semelhantes. Seriam representações daquilo que com tanta freqüência vemos entre cristãos professos? Não, verdadeiramente. A natureza da mudança em si parece uma garantia de sua estabilidade. É razoável supormos que qualquer outra escolha seria abandonada antes dela; que qualquer outro estado mental falharia antes da benevolência. É vão responder a isso, dizendo que os fatos provam o contrário. Respondo: quais fatos? Devemos apelar aos fatos aparentes na instabilidade de muitos que professam religião? ou devemos apelar à própria natureza da escolha e às Escrituras? Sem dúvida a estas. No âmbito da filosofia, podemos desafiar o mundo a produzir um exemplo de escolha que tenha tanta possibilidade de manter-se estável. As representações da Escritura são como as que mencionei acima. Que concluir, então, daquelas profissões efervescentes de religião que logo borbulham e logo esfriam; cuja religião é um espasmo: "é como a nuvem da manhã e como o orvalho da madrugada, que cedo passa" (Os 6.4)? Ora, precisamos concluir que esses jamais tiveram em si a raiz da questão. Que eles não morreram para o pecado e para o mundo, isso vemos. Que não são novas criaturas, que não possuem o espírito de Cristo, que não guardam seus mandamentos, isso vemos. Que concluímos, então, senão que são ouvintes empedernidos?

21. A santidade é outro atributo da benevolência. Esse termo é usado na Bíblia como sinônimo de pureza moral. Num sentido cerimonial, é ampliado para abranger pessoas e objetos; tornar santo e consagrar são a mesma coisa. Santificar e consagrar ou separar para uso sagrado são coisas idênticas. Muitas coisas eram, nesse sentido, santificadas sob o regime judaico. O termo santidade pode, num sentido geral, ser aplicado a qualquer coisa que tenha sido separada para o serviço divino.

Como um atributo da benevolência, denota aquela qualidade que tende a buscar a promoção da felicidade de agentes morais, mediante a conformidade com a lei moral. Como um atributo moral de Deus, é aquela peculiaridade de sua benevolência que a guarda contra todos os esforços para obtenção de seus fins por outros meios, que não aqueles moral e perfeitamente puros. Sua benevolência almeja obter a felicidade do universo de agentes morais por meio da lei moral e do governo moral e em conformidade com sua própria idéia subjetiva de direito. Em outras palavras, a santidade em Deus é aquela qualidade de seu amor que garante sua conformidade universal, em todos os seus esforços e manifestações, à idéia divina de direito, segundo permanece em desenvolvimento eterno na Razão Infinita. Essa idéia é a lei moral. Ela é às vezes empregada para expressar a qualidade moral ou o caráter de sua benevolência em geral ou para expressar o caráter moral da Divindade. Às vezes parece designar um atributo e, às vezes, uma qualidade de seus atributos morais. A santidade, sem dúvida, é uma característica ou qualidade de todos os seus atributos morais. Eles se harmonizam no seguinte: que nenhum deles pode consentir em fazer outra coisa, senão conformar-se com a lei da pureza moral conforme desenvolvida e revelada na Razão Divina.

A santidade como um atributo de Deus é pressuposta em toda parte e com freqüência declarada na Bíblia. Se for atributo de Deus, deve ser um atributo de amor, pois Deus é amor. Esse atributo é celebrado no céu como um dos aspectos do caráter divino que dão prazer inefável. Isaías viu os serafins postados em torno do trono de Jeová clamando uns aos outros: "Santo, Santo, Santo" (Isaías 6.3). João também teve uma visão do culto no céu e disse: "não descansam nem de dia nem de noite, dizendo: Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus, o Todo-poderoso" (Ap 4.8). Quando Isaías contemplou a santidade de Jeová, clamou: "Ai de mim, que vou perecendo! Porque eu sou um homem de lábios impuros e habito no meio de um povo de impuros lábios; e os meus olhos viram o rei, o SENHOR dos Exércitos!" (Is 6.5). A santidade de Deus é infinita, não surpreende que a percepção disso tenha afetado dessa maneira o profeta.

A santidade finita deve sentir-se eternamente reverente na presença da santidade infinita. Jó diz: "Com o ouvir dos meus ouvidos ouvi, mas agora te vêem os meus olhos. Por isso, me abomino e me arrependo no pó e na cinza" (Jó 42.5). Não há como comparar o finito e o infinito. Jamais virá o tempo em que as criaturas poderão contemplar face a face a santidade infinita de Jeová, sem ficarem como pessoas dominadas por uma harmonia de prazer por demais intenso, sendo impossível suportá-la com tranqüilidade. O céu parece não conseguir suportá-la sem irromper em rompantes de enlevo inexprimíveis.

As expressões de Isaías e Jó não implicam necessariamente uma época em que estivessem em estado pecaminoso, mas sem dúvida essas expressões estavam relacionadas com quaisquer pecados de que tinham sido culpados em qualquer momento. À luz da santidade de Jeová, eles viram a degradação comparativa do caráter deles mesmos como um todo. Essa visão sem dúvida sempre afetará, e muito, os santos. E preciso que assim seja; mas, em outro sentido eles podem ser, e são, tão santos, à sua maneira, quando Deus. Sem dúvida, é isso que Cristo queria dizer quando disse: "Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai, que está nos céus" (Mt 5.48). O significado é que devem viver para o mesmo fim e serem inteiramente consagrados a isso, assim como Deus o é. E preciso que assim seja para serem verdadeiramente virtuosos ou santos em algum grau. Mas quando o forem, uma visão plena da santidade de Deus os confundirá e dominará. Quem duvida disso não considerou a questão sob a devida luz. Ainda não elevou os pensamentos conforme necessita para contemplar a santidade infinita. Nenhuma criatura, por mais benevolente que seja, pode testemunhar a benevolência divina sem ser dominada pela visão clara dela. Sem dúvida isso é verdade em relação a todos os atributos do amor divino. Por mais perfeita que seja, a perfeição da criatura é finita e, levada à luz dos atributos da virtude infinita, parecerá a mais pálida das estrelas na presença do sol, perdida no fulgor de sua glória. Que o mais justo dos homens na terra ou no céu testemunhe e tenha a plena compreensão da justiça infinita de Jeová, e sem dúvida ela o encherá de temor indizível. Assim, se o santo mais misericordioso da terra ou do céu tivesse uma percepção clara da misericórdia divina em sua plenitude, isso lhe tragaria todos os pensamentos e imaginação e, sem dúvida, o dominaria. E assim também com todos os atributos de Deus. Ai! quando falamos dos atributos de Jeová, muitas vezes não sabemos o que falamos. Se Deus se revelasse a nós, nosso corpo pereceria de imediato: "homem nenhum", diz ele, "verá a minha face e viverá" (Êx 33.20). Quando Moisés orou: "Rogo-te que me mostres a tua glória" (Êx 33.18), Deus foi condescendente e o escondeu na fenda de uma rocha e, cobrindo-o com a mão, passou por ele, permitindo que Moisés só o visse pelas costas, avisando-o que não podia olhar sua face, ou seja, suas glórias descobertas, e viver.

A santidade ou harmonia moral do caráter é, portanto, um atributo essencial do amor desinteressado. E preciso que assim seja pelas leis de nosso ser e pela própria natureza da benevolência. No homem, ela se manifesta em grande pureza de palavras e modos, em grande aversão a toda impureza da carne e do espírito. Nenhum homem professe piedade sem possuir esse atributo desenvolvido. O amor requerido pela lei de Deus é o amor puro. Ele procura fazer feliz seu objeto, só pelo ato de fazê-lo santo. Ele manifesta a grande aversão ao pecado e a toda impureza. Nas criaturas ele anseia e, sem dúvida, sempre ansiará e lutará pela pureza ou santidade infinita. Jamais encontrará um lugar de descanso num sentido tal que não almeje elevar-se mais. A medida que percebe mais e mais a plenitude e infinitude da santidade de Deus, sem dúvida ansiará e lutará por ascender as alturas eternas onde se coloca Deus numa luz intensa demais para a mais potente visão dos mais elevado querubim.

A santidade de coração ou vontade produz um desejo ou sentimento de pureza na sensibilidade. Os sentimentos tornam-se supremamente sensíveis à beleza da santidade e abominação e deformidade de tida impureza espiritual e até física. Isso é o que se chama amor da santidade. A sensibilidade fica enlevada com a grande beleza da santidade e indizivelmente desgostosa com o oposto. A menor impureza em palavras ou atos perturba em demasiado aquele que é santo. Pensamentos impuros, caso sugeridos à mente de um ser santo, são instantaneamente considerados por demais ofensivos e penosos. A alma se esforça e luta para lançá-los fora como as mais repugnantes abominações.3

 

1 Um autor recente falou com desdém em "ser", conforme diz, "induzido por sofismas a crer ou, antes, dizer, que fé é amor, justiça é amor, humildade é amor". Eu recomendaria sinceramente a ele e a autores como ele o estudo do décimo terceiro capítulo de Primeira Coríntios. Ali encontrarão um exemplar do que lhes agrada chamar sofisma. Se é "sofisma" ou "generalização excessiva ", como parecem considerar outros autores, apresentar o amor como algo que possui os atributos que compreendem as várias formas de virtude, trata-se com certeza da "generalização" e "sofisma" da inspiração. A generalização foi a grande peculiaridade do ensino de Jesus. O fato de ter resumido todos os mandamentos de Deus e reduzido toda a obediência ao amor é uma ilustração disso, e não havia outro modo pelo qual pudesse expor o engano daqueles que obedeciam à letra, mas desconsideravam e violavam o espírito dos mandamentos divinos. O mesmo se diz dos apóstolos e também de todo pregador do Evangelho. Todo ato externo é só a expressão de um estado voluntário interno da mente. Para compreender a nós mesmos e aos outros, precisamos conceber com clareza o verdadeiro espírito da lei moral e da obediência sincera a ela.

2 Na edição de 1878, aqui começa uma nova aula intitulada: Atributos do Amor.

3 A Aula precedente sobre "Os Atributos do Amor" e a seguinte, sobre "Os Atributos do Egoísmo" foram condensadas por james H. Fairchild da edição de 1851 para a de 1878. Elas foram publicadas por inteiro em Charles Finney, Principies of Love, compilado por L. C. Parkhurst jr., Minneapolis; Bethany House Publishers, 1986, 202 p. Principies of Love também inclui três sermões de Finney sobre Amor, originalmente publicados em "The Oberlin Evangelist".

 

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